sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Filosofias de um homem que anda sozinho

Era um daqueles dias em que até o Sol luta por seu lugar. Daqueles em que as nuvens se rebelam, se aglomeram e, tal qual titãs atacando o Olimpo, subjugam Apolo. Daqueles em que o céu chora de mansinho, como se um corte fino e longo o fizesse sangrar gota após gota. Era, também, a "deadline" de minha dissertação de mestrado. E havia algumas páginas a serem escritas...
Acordei tenso, com o peso dos últimos dois anos nas costas. Finalmente era chegado o momento de mostrar ao mundo o que fiz nesse tempo. Era hora de publicar - sempre lembrando que, como diria Machado de Assis, "o pior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado". E havia um pecado do qual eu não podia fugir: minha displicência.
Sempre defendi a tese de que tudo aquilo que realmente vale a pena na vida pode ser expresso na forma de um quociente. E o exemplo que sempre citei quando me pediam um era o talento, que defini como o quociente da relevância do trabalho realizado pelo tempo empregado em sua realização. A idéia está longe de ser original: existe desde que alguém percebeu que era interessante comparar o custo de determinada coisa com o benefício que ela proporciona.
O que me chamou a atenção para essa idéia do talento, em particular, foi, sem qualquer modéstia, eu mesmo. Meus resultados, principalmente na graduação. Quantas e quantas vezes ouvi alguém dizer que tinha estudado tantos e tantos dias, virado tantas e tantas noites estudando para aquela prova... Aquela mesma para a qual eu separei duas ou três horas da véspera para me preparar. Aquela mesma que eu fui bem e o(a) fulano(a) que estudou muito mais foi mal. Essa situação foi tão incomodamente freqüente em minha graduação que não pude deixar de notá-la como a causa do estranho constrangimento que por muito tempo andou a meu lado. Meu truque, é claro, sempre foi usar meus talentos. E foi somente aí, quando percebi isso, que comecei a temer ainda mais o confronto com a máxima "conhece-te a ti mesmo".
O problema de conhecer a si mesmo é reconhecer seus próprios defeitos e limitações. É por isso que, embora não acredite na palavra, coloco minha displicência como meu grande "pecado" nesses últimos dois anos. Porque uma coisa que eu tive foi tempo para pensar. E o que é muito pior: tempo para fazer! Hoje vejo que aquele dia só foi tão desesperado porque eu, simplesmente, deixei tudo se acumular nele. Se tivesse dividido o trabalho em doses homeopáticas nos dois anos de meu mestrado, poderia ter feito absolutamente tudo dentro do tempo e sem correria. Posso até reconhecer que tenho talento suficiente para levar um mestrado em meio a sérias adversidades, mas essas não servem de desculpa para mim. A razão de meu atrapalho e conseqüente insatisfação com o resultado de meu trabalho foi, nada mais, nada menos, que minha displicência. Se tivesse feito tudo com seriedade e aproveitado meus talentos como deveriam ser aproveitados, poderia ter feito um trabalho muito melhor. Não o fiz porque sempre usei meus talentos para ganhar "horas bônus" em diversões que nem eram tão necessárias assim. Pelo menos meu boliche melhorou nesses dois anos!
Para remediar as dores que minha displicência agora causava em minhas costas, resolvi ir mais cedo para a universidade. E mais que isso: pela primeira vez nos últimos dez meses, almoçar por lá. Entrei no laboratório às onze da manhã. E me arrependi disso cinco minutos depois, quando me deparei com um enjoado problema técnico. Pior é que, ironicamente, poderia ter feito o que precisava de casa mesmo e não teria o problema... Mas isso é o de menos.
Foi em meu almoço "filosófico" (Kierkegaard ficaria orgulhoso!) na By Jack do ICB que esse texto nasceu. Ali, no tão inusitado quanto estranhamente natural confronto de tons entre o feijão-com-arroz e o strogonoff de frango que eu percebi que estava sozinho. "Mesa para um", eu pediria a um garçom se fosse um restaurante e houvesse essa necessidade. No prato, as duas realidades que eu via: o trabalho "basicão" que estava fazendo e o "sofisticado" que poderia ter feito. Se entrelaçavam, mas não se confundiam em cor, sabor e textura. Um era um, o outro era o outro e eu estava sozinho. Simultaneamente culpado e única testemunha de meu crime mais que imperfeito: um tiro no próprio pé!
Ferido em meu orgulho, subi, cambaleante e despreparado, as escadas de volta ao ICE. Todo o processo de meu almoço durou cerca de quinze minutos. Voltei ao laboratório e trabalhei com afinco até as cinco da tarde, quando finalmente a última folha impressa de minha dissertação repousou sobre as demais. Entreguei o trabalho ao meu orientador para eventuais correções. Ainda não era a versão definitiva, mas pouco deveria mudar.
Na saída, eu e uma amiga (a única outra pessoa que ainda estava no laboratório), pegamos carona com nosso orientador. Ela desceu no São Mateus. E por alguma razão que simplesmente não sei explicar - e não por falha da memória; na hora também não soube explicar essa minha ação - desci junto com ela. Poderia ter aproveitado mais a carona... Mas não quis. Troquei algumas palavras com minha amiga enquanto o carro de meu orientador se perdia entre os demais que passavam na Av. Independência em direção à Rio Branco. Depois, abri meu guarda-chuva e segui meu caminho quietinho, evitando a garoa fina.
Como um escritor que degusta um charuto após colocar o último ponto final em um livro, eu também queria cometer uma extravagância. Completamente avesso às idéias de fumar ou beber alguma coisa, decidi que pegar um táxi da Praça do São Mateus até em casa já era suficiente. Mas chegando lá, tive uma sensação, como diria Tio Patinhas, "de bolso vazio". Não me faltava dinheiro, mas a estranha comemoração - muito mais exótica que maças carameladas cobertas com castanhas - me pareceu absurda. Não desnecessária, mas absurda. Se o negócio era "pegar táxi", poderia andar mais dois quarteirões e pegar um táxi que sairia mais barato. E assim, exato oposto da performance de Gene Kelly em Singin' in the Rain, caminhei até o ponto de táxi seguinte. Só que a essa altura, a garoa deu uma trégua. E aí sim me pareceu estúpido ir para casa de táxi. Pensei: "ando mais um pouco e pego um ônibus na Rio Branco". Mas chegando na Rio Branco, fome! Nada como aquele hambúrguer enorme e incrivelmente barato que vende ali, naquela lanchonete uns cento e cinqüenta metros além da esquina com a Independência. E lá fui eu... Pedi o hambúrguer para viagem e, aproveitando a lanchonete vazia, sentei-me num banquinho de madeira. E foi ali que eu comecei a enteder porque tinha andado tanto...
Mais tarde, no banho, entendi perfeitamente minhas atitudes. Consegui me reconhecer essencialmente humano: o tempo todo, tinha buscado, por instinto, o prazer. Desde quando usei meus talentos para banalidades até aquela caminhada prolongada. Ah, sim, porque afinal de contas, inconscientemente, eu sabia que quanto mais cansado estivesse, mais prazer sentiria no repouso. E assim, já cansado, tinha decidido andar para me cansar ainda mais - pois assim sentiria mais prazer quando a água quente do chuveiro batesse em minhas costas naquele dia frio e úmido. Era reconfortante pensar que tudo estava acabado e que eu tinha conseguido. E "sozinho"...