sábado, 29 de setembro de 2007

About... (mar/2006)

Ontem eu conheci uma pessoa. Seu nome não é importante. Tampouco sua aparência - visto que é tão comum quanto possível. Uma pessoa digna de admiração. Não digo que me tornei fã, mas suas atitudes são curiosas.
Essa pessoa tem a incrível capacidade de, a seu modo, conseguir tudo quanto deseja. Foi ela quem me mostrou que há coisas que estão ao nosso alcance imediato - e que há coisas que ainda não estão. Foi ela quem me ensinou, também, que, entre as coisas que estão ao nosso alcance imediato, existem aquelas que valem a pena e as que não valem a pena. Ou, em outras palavras, que existem coisas que realmente importam e coisas que são perfeitamente fúteis e/ou supérfluas. Ensinou-me ainda que não é necessário querer tudo aquilo que não se tem, mas apenas aquilo que se precisa. Seja para um fim imediato ou futuro.
A grande virtude que consegui reconhecer nessa pessoa foi sua incomensurável paciência. Sempre sabendo muito bem o que deseja, faz de tudo para atingir seus objetivos. Não se importa tanto com o tempo que irá empenhar até obter o que deseja, mas com a relação custo/benefício envolvida. Assim, pode esperar anos e suportar pequenas "derrotas" no caminho até conseguir o que deseja - se o tempo empenhado for compensado pela conquista final. Ensinou-me, com isso, que as derrotas só existem quando não são previstas. Pois há casos em que "perder" é amplamente desejável! Casos em que é necessário se dar um passo atrás para conseguir andar dois para a frente depois...
No entanto, essa pessoa é reconhecida pelo vulgo por outra qualidade: a inteligência. Penso que esse substantivo não é, de fato, aplicável a essa pessoa. Embora seja inegavelmente inteligente, é reconhecido não pela sua inteligência (como afirma o vulgo), mas por sua proficiência. Sua proficiência no trabalho. De maneira alguma me admira que isso seja digno de nota, em se tratando da pessoa em questão. Metódica e centrada como ela só, a proficiência no campo profissional é absolutamente necessária para que consiga grande parte das coisas que deseja. Reconhece o valor edificante do trabalho e vê nele um porto seguro para a aquisição de muitos bens - não apenas materiais.
Aliás, falando em bens materiais e não-materiais, lembro-me de outra característica marcante dessa pessoa: o carisma. Através dele - pois é incrivelmente simpático -, conseguiu muitas amizades. Amizades valiosas.
Mas o que torna essa pessoa absolutamente digna de minha admiração é sua capacidade de jogar com a vida. Com sua aparência sempre serena, tranqüila, aparentemente invisível para o mundo, consegue aquilo que julga necessário para sua felicidade. Em certos casos, é verdade, acaba sendo ajudado pela sorte. Mas nem por isso deixa de pensar muito bem cada movimento que faz.
Enfim, é uma pessoa que usa todos os recursos dos quais dispõe para conseguir o que deseja. Podendo conseguir algo independentemente da intervenção de outros, prefere essa maneira. Não podendo, tenta fazer a situação virar a seu favor, ainda que isso demande tempo e energia. Sua jogada é, usualmente, precisa, correta. Mas como um ser humano, não livre da capacidade de cometer erros. E os comete com uma freqüência que causaria espanto a quem se tornou fã por esse relato. No entanto, aí entra em ação sua inteligência, sua incrível capacidade de contornar os desvios da idealidade e colocar as coisas no rumo novamente. Em certos casos, chega a agradecer aos céus por um erro cometido e a inspiração que lhe foi dada no momento para corrigir o mesmo - há casos em que o erro se torna um atalho!
Uma pessoa singular, única, sobre a qual talvez nunca mais volte a escrever.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Bicho de goiaba

O ser humano se difere dos demais animais por sua capacidade de racionalizar coisas. E isso é coisa que todo ser humano sabe. O ser humano também tem uma certa necessidade - mais aflorada em alguns espécimes, é verdade - de tentar entender o meio que o cerca. Sendo naturalmente um animal social - e aqui me eximo de mais críticas a uma sociedade tão selvagem e burlesca como a brasileira -, alguns homens se preocupam em entender a sociedade e se dedicam às chamadas ciências humanas. Enquanto outros homens se preocupam em entender a Natureza, dedicando-se às ciências naturais. E dentro do campo de estudo das ciências naturais, temos a Física. Essa ciência é, talvez, o grande ícone da capacidade de racionalização humana. É justamente a ciência que tenta descrever a Natureza - porque, no fundo, entender a Natureza não é papel de nenhuma ciência, mas das religiões...
E qual foi a maneira que os físicos encontraram para descrever a Natureza? Ou melhor: qual foi a linguagem que eles usaram para descrevê-la? Sim, pois uma descrição dessa magnitude precisa ser feita em uma linguagem objetiva e universal, aceita de forma absoluta e incontestável. E aí chegamos a um ponto crucial: nenhum texto pode ser considerado objetivo a esse nível. Incutido nele há, necessariamente, a figura do autor, o que dá um caráter pessoal muito pouco interessante para uma descrição que precisa ser absoluta e incontestável. É preciso, portanto, definir padrões. É preciso inventar tal tipo de linguagem. E se dissermos que uma pedrinha colocada junta de outra são duas pedrinhas e atirarmos uma pedrinha ao chão para cada ovelha que entrar no cercado, estaremos criando uma forma absoluta e incontestável de contar ovelhas, de "medi-las". Assim se criou a Matemática. Deus não escreveu o universo em Matemática, mas essa foi pura e simplesmente a forma que nós, seres humanos, inventamos para descrever a Natureza.
O problema é que Matemática consiste em números - números com significados. E um número é sempre uma medida de alguma coisa, de alguma grandeza. No caso do cercado de ovelhas, duas pedras significam duas ovelhas dentro do cercado. Mas e a Natureza? Como medir a Natureza? Como transformar a Natureza em números? Aí entramos no campo das invenções das grandezas. Alguém defina espaço. É, aquela história de três dimensões, x, y e z, sistema cartesiano... Por que um metro vale exatamente um metro? Ora, poderia se arbitrar que o metro teria um outro tamanho qualquer e tudo estaria racionalizado da mesma maneira... Importante é ter uma grandeza e sua unidade de medida. Mas convenhamos que nossa descrição da Natureza seria um tanto incompleta se a gente fosse limitado a ficar com uma régua na mão medindo as dimensões de tudo o que os olhos alcançam. É preciso ir além. Afinal, as coisas não são simplesmente, mas elas também se movem. E quando o fazem, seguem leis da Natureza. Afinal, tudo tende a cair em direção ao chão... Isso não pode ser coincidência! Há um conjunto de tendências muito forte aí que nos permite enunciar certas leis naturais. No entanto, conforme dito, as coisas se movem, mudam de lugar e até se desgastam. Mesmo que se deixe uma rodela de tomate dentro de um recipiente de vidro completamente tampado, ela vai se deteriorar. Pode levar mais ou menos dias para isso acontecer, mas vai acontecer. E aí temos uma outra grandeza natural indefinível: o tempo. Que é justamente onde eu queria chegar...
Einstein começou a elaborar a Teoria da Relatividade quando percebeu que havia alguma coisa estranha com o tempo. A velocidade (razão do espaço percorrido por tempo gasto) da luz não dependia do referencial, ao que todas as experiências indicavam. No entanto, a verdade é uma só. Se eu estou num trem em movimento e, bem no instante em que estou passando pelo meio de uma plataforma, luzes nas duas extremidades da plataforma se acendem ao mesmo tempo, pelo simples fato do trem estar em movimento eu direi que as luzes de um dos lados da plataforma se acenderam primeiro. Ao contrário, uma pessoa que estivesse parada no meio da plataforma e assim ficasse depois que as luzes se acenderam, diria que os dois lados se acenderam ao mesmo tempo... Mas a verdade é uma só. Eu e o outro observador fornecemos relatos diferentes para o mesmo evento porque o vimos de referenciais diferentes. E seria possível ficar horas citando exemplos em que o referencial faz diferença, tornando as grandezas mais fundamentais da Física - espaço e tempo - incomodamente relativas. Mas não vou fazer isso. Basta dizer que o tempo é a coisa mais irritante que o homem já inventou!
A característica mais marcante do tempo é que ele sempre flui no mesmo sentido. E como estamos imersos nele - pregados nele feito pregos num pedaço de madeira -, vamos junto para onde ele quiser nos levar. E como ele vai sempre pra frente, vamos sempre para o futuro. O tempo pode até passar mais rapidamente ou mais lentamente para nós dependendo de nossa velocidade, mas ainda assim sempre vamos para o futuro... E assim, viver nosso tempo aqui consiste, basicamente, numa jornada que vai acabar em um momento futuro.
Decidir o que fazer com o tempo que nos é concedido é a questão fundamental da vida de todo ser humano. E essas escolhas nos fazem quem somos. Tais escolhas nos conduzem a experiências, e tais experiências a aprendizados. E tudo isso leva tempo.
Diz-se que uma pessoa madura é aquela que está "preparada" para a vida. Talvez a primeira contestação a se fazer aí é que a vida oferece um número tão absurdamente grande de possíveis eventos passíveis de acontecer a qualquer tempo que ninguém tem, na prática, tempo o suficiente para se preparar para tudo que a vida pode lhe aprontar... Mas quando a pessoa reúne uma gama de experiências significativas - e nisso o tempo gasto em vivenciá-las é de importância bem pequena -, diz-se que a pessoa é madura. Não importa se você ficou dez anos ou dez minutos fazendo determinada coisa: tudo o que importa para a maturidade é o aprendizado que aquilo lhe proporcionou. E nesse sentido, tentar novas experiências é sempre interessante. A ironia, é claro, é que todo mundo têm a maior admiração pelas pessoas maduras. Todos querem ser pessoas maduras. E ninguém vê que se realmente somos dignos dessa metáfora alimentícia, a posição mais triste é justamente aquela a qual todos ambicionam: a de fruto no chão, podre de tão maduro. Quanto custa ao ser humano perceber que a graça não é bater a mão no peito e dizer "eu sou maduro", mas justamente o contrário: "eu sou aprendiz"... Dizer que fulano é "maduro" é, nesse sentido, uma tremenda falta de maturidade. Dizer que fulano é "mais maduro" (ou "menos") que beltrano então, nem se fala... Se a dita maturidade tem mais a ver com o número e com a qualidade das experiências que um indivíduo viveu que com a quantidade de velas em seu último bolo de aniversário, então querer medir maturidade é algo completamente impossível.
Sou maduro não. Só quero estar "no ponto" para o que desejo fazer com meu tempo: como Gonzaguinha, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz...

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Domvs Italica (dez/2004)

O rapaz acordou tarde. Quando o mundo entrou em seu foco, pensou que tinha todo o direito de acordar tarde. Afinal, tinha feito muita coisa na semana que se passara. Tanto que já nem lembrava do que fizera, mas estava cansado.
O café foi rápido. A manhã, de faxina, foi lenta. O tempo, implacável, insistia em lhe desobedecer. Enfim, a sesta do almoço. O momento ideal para meditar sobre a vida.
Deitado em sua cama, viajou por campos verdes longínquos e castelos. Sonhou com belas princesas em diáfanos vestidos ofertadas-lhe por merecimento. Era o que sonhava, o que queria. E então, adormeceu profundamente. As princesas e os castelos deram lugar a muros de concreto e pessoas conhecidas. Os campos verdes se transformaram em asfalto. Estava de volta ao mundo real.
Sua mãe vinha ao seu encontro. O chinelo nas mãos, desordeiro que nunca fora. Seu irmão menor, atrás dela, a rir-se. Traidor, mentiroso. Como as crianças são cruéis, pensou. Nunca tivera infância. A vida sempre lhe fora um parafuso a mais.
Com o corpo dolorido da surra, jurou vingança. Disse a si mesmo que o mundo haveria de se curvar a seus pés. Júpiter estava para ser destronado. O plano estava arquitetado e não havia como falhar. Agiria sozinho, não confiava em ninguém. No fim, teria tudo. Seria tudo.
Novamente acordado, não guardou nenhuma lembrança do sonho. Mas certo era que o mesmo permanecia em sua mente, pois que seus pensamentos ainda eram os mesmos. O barulho insistente de uma broca furando o concreto lhe colocou de volta ao chão. Ainda era humano. A impertinente broca mais uma vez se anunciou, reclamando do trabalho a que era obrigada. E ele queria satisfações. Foi encontrar a escandalosa na mão empoeirada de seu pai. Ainda era humano, embora trinta anos mais velho.
- Pode buscar o pão? - pediu-lhe o pai.
Respondeu na afirmativa. Estava novo em folha. Pegou o dinheiro e saiu.
- Dez pães, por favor. - pediu à moça da padaria.
Em seguida, com o pacote nas mãos, tomou o caminho de casa. E então, um pensamento lhe ocorreu. Estava parado em frente à locadora. Enfim, por que não? Afinal, era seu direito. Entrou. Saiu dez minutos depois, levando um musical na outra mão.
Em casa, à noite, todos tomavam café com pão assistindo ao filme na sala escura. Enfim, tinha vencido. Não havia decorrido nem um quarto do filme e todos, um a um, alegando cansaço, foram se retirando para seus aposentos. Sim, tinha vencido.
Mas a sala escura lhe reservava uma surpresa. Desviando os olhos da tela, deteve-se a olhar seus pés. E pensou no quanto tinha vivido até então. Tinha vencido. Finalmente era imperador. Mas sem povo, percebeu, não tinha império.
Era a queda de sua Roma.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Primavera

"Como crianças que tremem no escuro e se assustam com qualquer coisa: assim somos nós em plena luz do dia. Esse pavor da escuridão mental não pode ser dissipado pelas lanças cintilantes do Sol, mas apenas pela compreensão. No fundo, no fundo, somos todos crianças com medo do escuro"
Sinto que vai chover. Toda vez que escrevo a palavra "setembro", sinto que vai chover. Muito mais lógico seria se sentisse isso ao escrever a palavra "novembro", por causa da música do Guns, mas a coisa não funciona assim. Em breve será primavera e flores e borboletas estarão por toda parte, transformando o hemisfério sul numa inusitada pintura impressionista. Mas a chuva cairá e a tinta escorrerá sobre a tela... O amarelo sobre o vermelho, o vermelho sobre o amarelo e o azul, sobretudo, sobre todos: escorrendo do céu e deixando os dias com a cara daquela idéia perdida na infância. Sonho de primavera... "Deixar-me cortar e voltar sempre inteiro". Coisa que nunca aprendi.
Jamais aprendi a deixar-me cortar. Nunca pude suportar a idéia de ver meu próprio sangue escorrendo pelo nada simples motivo de que assim eu permiti. Assim, tenho vivido, desde que me dei conta da idéia do corte, de corpo fechado. Minha pele é dura... Mas o recheio é mole e hemorrágico - e hemofílico. Hermeticamente fechado em mim mesmo, criei um mundo próprio, onde, dia após dia, vou me desvivendo. Fi-lo a partir do mundo real, como irrealidade alternativa à sua hostilidade. E hoje é o dia chave nisso tudo. Hoje é o dia do corte. Vindo do único lugar de onde poderia vir - ou seja, de dentro - ele se faz sentir. A dor sentida no momento não justificou o medo sentido desde sempre. Foi então que descobri que vinha con-morrendo com uma dor muito mais aguda que a do corte: a dor do medo do corte. Mas agora estou cortado, a armadura rachada, e esse horrível e medonho pus está sendo expelido. Ficarei fraco, isso é certo. Mas agora surge a brecha, a oportunidade que minha alma sempre adiou. É hora de fazer como a primavera e voltar inteiro... Não ainda mais sólido e gélido que antes, mas como a borboleta que nunca ousou bater as asas.
Mas nem tudo são flores em tempos de primavera. Sempre há uma certa maldade no ar, como se um espinho escondido estivesse pronto a pular em nosso dedo mal tocássemos a roseira. São assim, miseravelmente soturnos, aqueles que caçam borboletas. Vivem no encalço das borboletas, almejando/invejando o vôo livre, despreocupado e sem compromisso delas. E com suas redes de lágrimas, aprisionam as borboletas em seus piores momentos de lagarta ("Você! Quem é você?"). Nada ganham com isso, mas se comprazem na infelicidade alheia, como se aquilo lhes servisse de alimento. Mas o que talvez seja mais cruel nisso é que, às vezes, os próprios caçadores de borboletas se iludem e pensam que são aquilo que não são: borboletas! Fazem tudo sem saber, sem perceber. E assim, de olhos fechados, enrijecidos pelo medo que os ilude, liberam sua ira cega contra aquilo que, inconscientemente, mais amam: sua própria liberdade.
É assim, dolorosamente esplendorosa, a primavera que se aproxima. Não será a mesma de um ano atrás. Nem será como a do ano que vem... É assim a vida. E não há tempo a perder. Façamos agora nosso corte para que não acabemos tecendo teias para redes. Sejamos borboletas felizes hoje e enquanto pudermos. Porque logo depois vem o Sol ardente do verão, queimando tudo e cauterizando o corte. E então estaremos presos novamente. Vivendo como os insetos que disfarçamos ser: frágeis, irritantes e perigosos.
"Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!"


*: thanks ao
Armazém cia de teatrO (em especial a Patrícia Selonk, pela brilhante interpretação do Chapeleiro Maluco em "Alice Através do Espelho"), a Cecília Meireles e a [Claude] Monet (que casou com a amante; porque "então foi Manet quem teve sífilis").