terça-feira, 19 de agosto de 2008

Produto do meio

"I don't want to be a product of my environment. I want my environment to be a product of me"

Assim começa Os Infiltrados, um dos melhores filmes de Martin Scorsese. O que Frank Costello (personagem de Jack Nicholson) não sabia era o efeito filosófico arrebatador que a frase teria em mim!

Já perdi a conta das vezes em que ouvi alguém falar que "o homem é produto do meio em que vive". E até ver Os Infiltrados pela primeira vez, nunca tinha questionado isso. Tudo bem: o filme também não questiona! A intenção é meramente mostrar poder e tal... Mas o mais interessante não é o poder; é a inversão dos papéis. Costello queria que o meio em que ele vivia fosse produto seu, de sua personalidade, de suas opiniões, de seus desígnios. E incutido nesse desejo do gângster, apareceu o erro fundamental do "produto do meio": o homem não é produto do meio; mas uma média do meio.

Oh!, meu Deus! Mais um texto chato do Rafael, à base de uma estatística maluca que só ele entende porque só existe na cabeça dele! Não. Realmente não resisti a fazer a ressalva da média, mas o tema de hoje é a inversão de papéis. E nada de matemática!

Bem, a idéia básica de "o homem como produto do meio" é que o meio modifica o homem. Óbvio, mas precisava ser dito. A proposta de Costello é fazer o contrário: o homem modificar o meio. É uma proposta ambiciosa, pois pode chegar a ser até perigoso existir um homem com poder de modificar um meio - quem já viu Cidadão Kane? Quem não viu pode tomar uma boa base pelo que certa emissora faz com a opinião pública de certo país... "Santa ironia, Batman!" "Oops, I did it again..."

Depois de uns dez minutos de filme pausado logo após as "first lines", cheguei a uma conclusão: evolução existe. Acontece de uma maneira muito, muito peculiar. Funciona assim: no começo, existia o Meio e a Vida como coisas distintas. E até hoje são coisas distintas, mas não tão independentes quanto na Criação. A Vida teve de se adaptar ao Meio Físico para se tornar viável. E as espécies foram evoluindo em busca de uma melhor adaptabilidade ao Meio por milênios - Charles Darwin e sua "seleção natural" explicam isso maravilhosamente bem. Até aí, é sempre o Meio que manda na história. Em algum momento da evolução, surgiu um ser capaz de transformar essa via de mão-única numa via de mão-dupla: o tal do ser humano... Quando eu estava na 1ª série do Ensino Fundamental, meu livro de Estudos Sociais dizia que "o homem modifica o meio". Pronto. Taí. Alguém disse. O homem pode modificar o Meio. Mas isso é só a princípio, porque, na prática, modificar o meio ambiente se tornou uma coisa tão corriqueira para o ser humano que, hoje em dia, é difícil fazer alguma coisa que não o modifique.

Mas o ser humano vai além! Sendo, na essência, um ser social, ele naturalmente modifica seu Meio Social. E isso não dá pra evitar! O muito que Os Infiltrados fez foi colocar uma frase de efeito no começo, porque a idéia de "poder supremo" para influir e modificar o Meio, isso todo ser humano tem como conseqüência do fato de existir. É sério: mesmo que você não faça nada (o que é impossível), o simples fato de você existir e não ser completamente isolado do mundo já modifica o meio em que você vive! As outras pessoas te julgam e isso as modifica. E como as opiniões das pessoas modificam o Meio Social, dá até pra inverter o paradigma: o meio é produto do homem!

Mas calma aí! Ainda não acabou. É fato que as opiniões difundidas no meio em que um homem está inserido o modificam. O homem é produto do meio e o meio é produto do homem, portanto. Que paradoxo! Não, não: é só o âmago do processo evolutivo. Que é um processo cíclico e dinâmico. O meio modifica os homens. Os homens reagem e modificam o meio. O meio modificado, por sua vez, modifica os homens... E assim se cria um ciclo. Talvez seja isso que Franz Kafka quis dizer em O Processo... Estaríamos convergindo para algum ponto? Não sei. A resposta dessa pergunta é literalmente uma questão de crença. Sei apenas que as modificações, de parte a parte, acontecem tão rápido que não nos damos conta de todas.

E sei de mais uma coisa também. A capacidade do ser humano de modificar o meio está atrelada a algo que lhe é característico: a consciência. É ela que nos define como humanos. É ela que controla nossos atos, que molda nossa personalidade. E assim, por mais que o meio nos modifique, sempre conservaremos algo essencialmente nosso, próprio, único, conceitual, diferencial, distintivo. Contudo, esse "algo próprio" não é imutável. A diferença é que somente a própria pessoa pode mudá-lo. Para tanto, é preciso conhecer-se e ter a consciência de que se é mutável e mutante. E é somente aí que se tem, de fato, o tal do livre-arbítrio. E com isso, compreende-se que ele só vem ao preço de uma grande responsabilidade. Mas isso é outra história...

Olha, até que, só por essa reflexão, posso dar uma nota 9,0 pr' Os Infiltrados!