terça-feira, 8 de abril de 2008

O almoço

Há certas coisas que mudam a gente. Naquela manhã, acordei diferente e me comportei como de costume. Levantei, tomei um banho, desci as escadas, tomei o desjejum, voltei ao meu quarto e troquei de roupa. Até aí, tudo mecânico. Foi na hora de calçar o tênis que as mudanças começaram a se manisfestar. Olhei para a calça verde levemente desbotada (de propósito) e decidi que não usaria o tênis de sempre. Peguei emprestado o All-Star de meu pai: sim, meu pai tem um! E o clássico ainda por cima, preto! Camisa preta com detalhes verdes, um sujeito "fashion", só faltando óculos escuros e Sweet Child O' Mine nos fones de ouvido, lá fui eu pra universidade.

Na hora do almoço, indo para o RU, me vi diante de uma cena vivida dois anos e meio atrás. O mundo não era mais o mesmo porque eu, para variar, sabia o que não devia: os mistérios da vida e da morte. Novamente eu sabia que alguém tinha morrido. Dessa vez, porém, não era surpresa. Da outra vez, tinha sido absolutamente chocante constatar o fato porque nem de longe o esperava. Depois, acabou parecendo plausível... Como o de agora. Ninguém ligado à universidade, dessa vez. O nome dele é Felipe. Mas antes fosse aquele Felipe de alguns textos atrás. Esse é de carne e osso. Carne, osso e sangue. O ser cuja existência parecia ter como único propósito me dar um puxão-de-orelha. Rafael, é feio criar um alter-ego. As pessoas não aceitam bem isso... Deus o moldou à perfeição, como Lhe é peculiar. Começou pelo nome. Depois, o resto. Felipe tinha exatamente a mesma doença que eu. Tratava com a mesma médica, inclusive. Os pormenores do caso diferem muito pouco para serem apreciáveis. Como o Felipe detetive, convenientemente quatro anos mais velho, também... Em uma das consultas de controle, minha médica comentou sobre ele e pediu que minha mãe e eu "déssemos uma força" a ele. Fui à casa dele. Quando ele veio atender a porta, quase caí duro: Felipe era um homem! Tinha corpo, falava, andava, pensava... Felipe vivia! Quero dizer: o Felipe que eu criei! Estava ali, parado na minha frente, sem tirar nem pôr, e passando pelo mesmo problema que eu - com o mero atraso de alguns meses. Era como se a parte de mim a que chamo "Felipe" tivesse saído do meu corpo como um vapor, se condensado e virado outro ser humano. Obviamente, ao que pude constatar durante a conversa, a personalidade do personagem e do homem eram completamente diferentes. Enquanto um esbanjava uma auto-confiança até irritante (a famosa "marra"), o outro segurava a tensão como uma pessoa com Mal de Parkinson segura um copo d'água. Naquele momento, soube que Felipe tinha uma postura potencialmente perigosa para quem ia se submeter a um transplante de medula óssea. Duas semanas depois de sua internação, ele veio a falecer. Já tinha passado a fase da quimioterapia e até o transplante em si. Mas o perigo é constante naquele tratamento: mesmo uma semana depois, os quimioterápicos ainda estão lá, ativos e perigosos. Na verdade, eles ficam agindo por alguns meses, mas é melhor nem falar disso... Resultado: o coração de Felipe não agüentou.

Como da outra vez, minha tristeza fazia os sorrisos alheios parecerem insultos. Novamente pensei no jejum de carne. Entrei no RU. Havia outras quatro pessoas comigo e me sentia sozinho. Felipe não me saía da cabeça: como era possível? Um rapaz aparentemente tão forte... Seria assim tão decisivo o fator psicológico? Eu custava a acreditar...

Coloquei a bandeja sobre a mesa e me sentei. O mundo sumiu e apenas vi meu prato. Temperei a carne com pimenta vermelha e ataquei-a como um canibal. Quando por mim rezaram e me salvaram, quando alguém foi embora (mas não) para sempre, ou percebi o que de melhor me restava, ou quando soube que essa era a única forma de não morrer eu como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Puxo o prato, aceito a carne e seu sangue.*

*: recomendo a leitura do conto "O jantar", de Clarice Lispector.