terça-feira, 11 de março de 2008

Leaving Neverland

Certa tarde eu estava no terraço de casa e vi uma pipa voando. O sol estava se pondo atrás de um morro em sua eterna rotina. A pipa era de um vermelho vivo feito sangue arterial e riscava o céu avermelhado de inverno em improváveis acrobacias. Olhei em volta: ninguém à vista. Nem em casa, nem em qualquer lugar das redondezas. Permiti-me deitar no chão e ficar observando a pipa.
Pensei na magia por trás daquele objeto tão simples e - paradoxalmente - tão complexo. Durante todo o período que, até então, tinha chamado de infância, nunca tive muita vontade de soltar pipa. Afinal de contas, que graça há? Foi somente aí, ao me fazer, pela primeira vez, essa pergunta de forma explícita, que percebi o que havia de tão mágico em uma pipa. A graça não está em soltar, em empinar a pipa; mas em fazer a pipa. A escolha do papel, a armação das varetas, a colagem, a rabiola... Só as crianças sabem fazer pipas de verdade. Porque uma pipa é, antes de tudo, o mais perfeito retrato da alma da criança que a fez. Talvez tenha sido por isso que nunca consegui ver graça na brincadeira: nunca tinha sido eu mesmo que tinha feito a pipa. Mas isso, por si só, não explicava minha comoção.
Aquela pipa não estava solta. Amarrado nela havia um cordão, uma linha. E na outra extremidade daquela linha, havia, certamente, a mão de uma criança. Essa era a mágica! Embora não pudesse ver a criança, percebi a linha como um prolongamento de seu braço. E sendo a pipa o retrato de sua alma, aquilo era voar. Naquele momento eu atinei para a verdadeira graça de soltar pipa. Até então, pensava que somente a pipa se divertia, pois somente ela voava. Mas não! Fazer a pipa dançar no céu era soltar a própria alma, era liberdade! As improváveis piruetas que a pipa descrevia não eram nada senão a própria imagem das revoluções da alma da criança que a segurava do outro lado da linha. E pensei que nunca tinha sido criança realmente.
Depois daquele dia, vieram primaveras e bichos de goiaba. Ambos me mostraram que ainda tenho muito em que pensar. E que, por sorte, de algum modo, ainda conservava algo de essencialmente infantil em mim. Um certo prazer por coisas que ninguém mais entendia, por assim dizer. Ainda conseguia me surpreender com o mundo à minha volta. Por alguns instantes, conseguia mesmo deixar de ser sério. Talvez seja por isso que todos me julguem esse "quadradão", "nerd" e o que mais se queira. Porque pouca gente ainda tem os ouvidos necessários para ouvir as gargalhadas de minha alma.
Mas tudo isso mudou. Depois de minha defesa de mestrado, não tive um único dia inocente mais. Se antes eu dormia às duas da manhã e levantava correndo no dia seguinte, hoje durmo cedo para acordar cedo, para não me atrasar para meu compromisso com a rotina. Ser adulto é saber não-viver e ter a consciência de que não se vive.
Outro dia estive vendo um trecho de Peter Pan. Sempre foi minha história infantil favorita - uma das poucas coisas que me fazem acreditar que fui criança quando deveria ter sido. Depois, como não consegui ver o filme todo, apelei para a melhor aproximação que dispunha: Em Busca da Terra do Nunca. Bem, falando como crítico de cinema, chega até ser melhor ver o filme do Johnny Depp. Parece ter sido o único filme que, de fato, captou a quintessência da história. Quando crianças, não queremos dormir com medo de ficarmos velhos. Mas o tempo, implacável, nos persegue. E quando ficamos velhos e podemos ficar acordados até tarde, sentimos vontade de dormir, na esperança de voltarmos a ser crianças por um piscar de olhos que chamamos sonho...