segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Dura lex, sed lex

"Quem quer casar com a Dona Baratinha,
que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha?"

Em tempos de 13º salário, compras de Natal e crise econômica mundial, achei que cabia um texto sobre economia. Mas coisa simples.

Toda a Matemática que se precisa saber para lidar com bancos é: juros. Ou seja, porcentagem. Juro é o dinheiro que se cobra para emprestar dinheiro. Isso quer dizer, basicamente, que se você emprestar dinheiro a alguém à juros, receberá de volta todo o dinheiro emprestado mais os juros. Enfim, uma das lições mais importantes na vida é quando a mãe fala para o filho lavar as mãos toda vez que pega em dinheiro, pois este circula na mão de muita gente. Sim, dinheiro é coisa que troca de mão com enorme facilidade. Os juros são os responsáveis pela acumulação.

Se não houvesse juros - mas todo mundo pagasse as dívidas -, o sistema seria filantrópico. Mas como banco não é instituição de caridade, a tendência é fazer o fluxo de dinheiro sair dos correntistas para o banco. Para tanto, o que se faz é oferecer uma melhor segurança para guardar o dinheiro das pessoas comuns. Sim, isso é bom. Mesmo se levando em conta o fato de que agora a posse do dinheiro é do banco e ele não só pode como vai usá-lo em suas próprias operações, deixar dinheiro no banco vale a pena. Mas se você deixar o dinheiro na conta corrente, é virtualmente como deixá-lo embaixo do colchão - com a diferença que você ainda paga as despesas de manutenção da conta. Uma opção é deixá-lo na poupança. É claro que, para isso, você precisa ter um excedente - poupança é aquele dinheiro no qual você não vai ficar mexendo toda hora. Isso é porque, no fundo, são as contas poupança que garantem liquidez aos bancos, são o que atestam que eles têm dinheiro. Em outras palavras, deixar dinheiro na poupança é como emprestá-lo ao banco. Por isso, o banco te paga juros sobre ele. Funciona sempre assim: quem empresta o dinheiro, recebe os juros.

E assim, esse texto fica muito simples. Tudo o que se precisa fazer é analisar quem está emprestando o dinheiro e qual é a taxa de juros. Na poupança, você empresta o dinheiro. No cheque especial, você é que pega o empréstimo. Por isso, a primeira dica é: fuja do cheque especial. Não é só pelo fato de ter juros, mas principalmente porque a taxa de juros dele é sempre muito alta - algo em torno de 8% ao mês, se não me engano. Parece-me que existem pouquíssimos cenários em que compensa pegar dinheiro do cheque especial. Todos eles obviamente ligados a investimentos com rentabilidade maior que a taxa de juros do cheque especial - enfim, coisas que não fazem parte do cotidiano de um correntista comum. No entanto, discutirei brevemente um desses cenários no próximo parágrafo: as ações. Por enquanto, basta saber que o cheque especial deve ser encarado como terreno proibido: o valor R$0,00 da conta corrente pode ser comparado a uma cerca eletrificada - com areia movediça do outro lado.

Ultimamente, o mercado de ações não tem atraído muito os investidores por causa da crise econômica mundial. Porém, antes disso, certamente era uma maravilha pensar que, comprando ações que se valorizem com o tempo, se conseguiria mais dinheiro do que se tivesse investido o mesmo valor na caderneta de poupança. A diferença é o risco. A poupança é uma tartaruga, mas é garantida pelo governo. As ações são lebres que podem "se cansar", desvalorizar. O interessante nesse mercado é comprar ações a baixo custo e vendê-las a alto preço: o famoso "comprar na baixa e vender na alta". Ou então, comprar ações e "esquecer" que as comprou para receber dividendos por ocasião do balanço, fazendo assim uma caderneta de ações. Tudo depende do seu estilo. Particularmente, não por conta da atual crise, acho Bolsa de Valores uma coisa perigosa para a saúde. Toma tempo ficar investigando que ações estão subindo ou caindo e tomar decisões de compra e venda. E a susceptibilidade a crises pode levar a desesperos que não acontecem na poupança - a não ser que a economia do país comece a caminhar tão mal que, de repente, a Miriam Leitão comece a falar a palavra confisco.

Outra fonte muito comum de sumiço de dinheiro é o cartão de crédito. Embora, como explicado, seja fato que deve-se "gastar dinheiro para fazer dinheiro", o cartão de crédito pode vir a ser um risco. Porque crédito é um dinheiro que você ainda não tem, que ainda não é seu. Logo, você deve pagar por ele. E assim, todo mês aparece a pior coisa relacionada ao cartão de crédito: a fatura. É nela que surge a tentação: a cobrança mínima. Porque imagine que você está com dificuldades para pagar a fatura do cartão: não é tentador poder pagar apenas 10% do valor total e já impedir que seu nome vá parar no SPC e/ou Serasa? A princípio, sim. O problema é que o serviço não é filantrópico. Assim, deixar de pagar alguma coisa equivale a pedir emprestado exatamente aquela quantia. Essa quantia fica acumulada para o mês seguinte e lhe serão acrescidos juros. Ou seja: quanto menos você pagar da fatura do cartão neste mês, mais dinheiro perderá no mês seguinte. Via de regra, os juros do cartão de crédito nunca são tais que se torne interessante encará-los. Portanto, é importante ter dinheiro para quitar a fatura. Por isso, é conveniente que você escolha o dia do vencimento da fatura de forma que este seja próximo ao dia do seu pagamento - dia 9 é um ótimo dia. Só não digo que é aconselhável deixar a fatura em débito automático porque sempre há o risco de, com isso, entrar no cheque especial - e isso seria trocar um problema por outro. Porém, aí é uma situação que vale a pena analisar: qual dos dois tem a taxa de juros mais baixa? Se não há como fugir da dívida, ao menos deva somente a quem cobra a menor taxa de juros. Neste caso, segundo me informou uma amiga que estava estudando o assunto, sai mais em conta dever ao cheque especial - me parece que a taxa de juros mais baixa em cartão de crédito é de 14% ao mês.

Por fim, gostaria de, rapidamente, enunciar três "leis" que resumem tudo que falei aqui, que são um guia para quem deseja levar uma vida tranquila no tocante a dinheiro. Como diz meu orientador, "As Três Leis de Carlinhos" (o ex-orientador dele se chama Carlos Eduardo):

1ª lei: escolha bem com quem você vai se casar. Não precisa ser pessoa rica, mas alguém que também tem vontade de crescer, alguém que também queira trabalhar. Essa é a "lei" mais importante. Pois mais importante que trilhar o caminho é escolher quem vai te acompanhar nesse caminho.

2ª lei: tem que sobrar dinheiro no final do mês; não mês no final do dinheiro. Resumo da economia doméstica. Como fazer isso pode ser um desafio maior ou menor dependendo da personalidade de cada um. Mas, em geral, um bom jeito de ter controle sobre as contas é definir as prioridades. Tudo aquilo que puder se reverter em lucro para você, não é gasto; é investimento. Gasto mesmo é aquele dinheiro que você nunca vai conseguir recuperar. Aluguel, por exemplo, é investimento: se você não tem onde morar, vai ficar difícil conseguir um monte de coisas... Cursos de línguas (principalmente inglês, que já está absolutamente fundamental) e plano de saúde também. Se você não investe nessas coisas, um monte de portas te são fechadas. Todo tipo de diversão é, em essência, um gasto. Logo, só comece a gastar dinheiro depois que tiver cuidado de todos os investimentos. Em tempo: nenhum país do G8 fala espanhol, logo não invente um curso de espanhol "porque é fácil". Só faça se houver a possibilidade gritante de se mudar para a Espanha, porque se não for para lá, é preferível fazer francês, italiano ou alemão e tentar alguma coisa em algum outro país da Europa. Mandarim também é muito bacana, a China vai dominar o mundo, mas você não vai para lá - a lotação daquele país já está esgotada.

3ª lei: tente guardar 20% de tudo o que você ganha. Dá até para colocar isso como um dos investimentos acima. Independente de você ter uma caderneta de ações, aplique esses 20% num fundo de baixo risco, como a poupança. Garanta moradia, alimentação e educação, depois esses 20%. Aí gaste. Diversão também deve fazer parte da vida - cheque especial é que não.

Em adição a essas "leis", podemos falar algo sobre "o sonho da casa própria". Como dito, moradia é fundamental. Logo, é natural pensar que a casa própria é melhor que aluguel. Nem sempre. É bem verdade que uma hora a casa própria se paga pelos aluguéis que você deixou de precisar pagar. Mas até lá, o caminho é longo. De fato, a casa própria só vem depois do cumprimento das "Três Leis de Carlinhos". É muito comum precisar de um financiamento para a compra da casa própria. Nessa hora, compare o IGP-M (controla o reajuste dos aluguéis) com a taxa de juros do empréstimo. Se a taxa de juros do financiamento for menor que o IGP-M (inclusive o previsto para o prazo de pagamento), vale a pena. Nessa situação, é como se você pagasse aluguel para você mesmo. De toda forma, procure reduzir ao máximo o valor do financiamento: é a hora de empregar a poupança...

Não faça "economia de palito". Não vale a pena ficar economizando em coisas pequenas e perder rios de dinheiro na hora de comprar um carro ou uma casa.

sábado, 22 de novembro de 2008

Timetwister

Eu estou em 22 de novembro de 1983. É uma terça-feira, são dez para as cinco da tarde e venta forte na cidade. Um choro de criança corta o ar: garotos também choram.
Eu estou em 24 de fevereiro de 2002. Acabo de encontrar o valor 89/63 como resposta da segunda questão da prova de Matemática do PISM III. São dez horas da manhã e faz calor. Entrego a prova, a fiscal sorri para mim e vou-me embora com uma grande interrogação a me torturar.
Eu estou em algum dia de março de 2009. O rosto de todas as pessoas na sala de cinema fica azul pela fluorescência inventada do Dr. Manhattan. Poucos conseguem ver o tempo da mesma forma.
Eu estou em 1990. Caniggia faz o gol que elimina o Brasil da Copa. A Seleção não era tão boa assim, mas tenho apenas sete anos e não compreendo isso. Desgosto do futebol.
Eu estou em 2000. Num júri simulado, defendo Capitu. Lanço sombras sobre todas as evidências da acusação e reflito que o Direito é, na verdade, sinistro. Descubro-me perdidamente apaixonado pela Verdade.
Eu estou em 1984. Minha primeira experiência com eletricidade: sabe-se lá como, tiro a capinha da tomada e... Bem, meu primeiro contato com elétrons livres é chocante.
Eu estou em 1995, num dia qualquer. Desembarco do Xangai para um Colégio coberto por densa neblina.
Eu estou em 20 de dezembro de 2005. Acabo de ler, pela primeira vez, O Pequeno Príncipe. Corro ao computador e anoto várias passagens em um documento.
Eu estou em 1986. Rolo pelas escadas da casa nova. Paro no último degrau, que é mais largo. Aprendo que toda escada começa no primeiro degrau.
Eu estou em 28 de fevereiro de 2008. São cinco da tarde e meu orientador de mestrado lê a ata da sessão de arguição de minha Dissertação. Sinto-me mais leve ao ouvir as palavras "concluindo pela aprovação".
Eu estou em novembro de 1994. Mergulho na piscina de um hotel fazenda. O doce de leite depois do almoço adquire sabor transcendental.
Eu estou em 18 de agosto de 2000. Ao sair do teatro, decido que os acontecimentos daquela noite não poderiam ser esquecidos. Inicio um diário.
Eu estou em 1993. Aprendo que as pessoas não gostam de apelidos.
Eu estou em fevereiro de 1988. Sentado nos ombros de meu pai, descubro que carnaval é uma palhaçada.
Eu estou em 1º de março de 2006. Estudo Química Orgânica para a prova do mestrado. Nisso descubro que carnaval não é palhaçada.
Eu estou em dezembro de 1993. Assisto ao São Paulo ser campeão mundial pela segunda vez. Redescubro o futebol.
Eu estou em 5 de julho de 2007. Um profundo céu azul brilha atrás do vidro translúcido da única janela do quartinho verde onde estava. Sinto-me feliz por perceber o tempo de maneira desordenada.
Eu estou em 23 de maio de 2002. Patrícia e eu vamos ao cinema ver Homem-Aranha. Surge uma amizade enigmática, mutante e simbiótica.
Eu estou em 1998. Monto um grupo de estudos com dois dos melhores seres humanos que já conheci. São os irmãos que escolhi.
Eu estou em outubro de 2010. O relógio do Parque Halfeld marca 19:00hs. Ao meu lado, rostos conhecidos que não via há muito tempo. Alguns mudaram mais que outros.
Eu estou em 13 de dezembro de 2002. Jogo boliche pela primeira vez. Apaixono-me pelo som do strike (a jogada, não a banda) e vejo o esporte como uma terapia.
Eu estou em 1985. Mamãe me coloca sobre uma cadeira posicionada contra a janela da rua para ver os "meninos grandes" jogarem bola. O jogo acaba quando começa a chover.
Eu estou em 22 de dezembro de 2003. Com O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel, surge o "Cine Alameda VI".
Eu estou em 4 de junho de 1993. Pelo telefone, às nove e meia da noite, recebo a notícia de que tenho um irmão de sangue: seu nome é Lucas.
Eu estou em 22 de novembro de 2008. Estou postando este texto em meu blog. Esta é minha história.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Riddikulus!

*: espero, com este texto, desrespeitar apenas as novas regras gramaticais da Língua Portuguesa.

Escrevo este texto para as pessoas de Juiz de Fora (e aquelas que a vêem como sua casa) que, por uma ou outra razão, não tiveram oportunidade de acompanhar o 1º turno das eleições municipais.

Alguns textos atrás, previ um desastre eleitoral. Felizmente, errei. Contudo, não tão fortemente quanto gostaria. Mas até que isso teve suas compensações tragicômicas...

Depois da saudosa Operação Pasárgada (mais uma operação devastadora e de nome maneiro da Polícia Federal) o não-saudoso ex-prefeito ex-radialista sempre-polêmico Alberto Bejani acabou renunciando e - convenientemente - abrindo mão de concorrer ao cargo de prefeito dessa querida cidade. Isso foi o que aconteceu de melhor.

Mas embora Bejani - famoso por suas campanhas risíveis e incrivelmente bem-sucedidas - não tenha participado do processo, o eleitor juizdeforano não ficou desamparado no quesito "risadas". Entre os candidatos a vereador, tivemos gente quase-literalmente chorando a não-aprovação no "vestibular eleitoral" de quatro anos atrás ("Me ajude! Me ajude! Me ajude!" - detalhe: dessa vez, FOI ELEITO!), sambinhas ("Agora é... Mamão... quinze-meia-dois-zero, o candidato que eu quero... um amigo de bom coração"), "visões celestiais", "uhuhuh", sacudidas na cidade e outras piadas. Mas não consigo ver nada que encarne melhor o espírito tragicômico do processo eleitoral no Brasil que a propaganda do candidato Luiz Carlos Hort Frut. Único candidato de seu partido, mal se dava ao trabalho de falar sobre as suas propostas - usava o tempo para falar do programa de governo do candidato a prefeito que estava apoiando. Tudo bem que quase todo partido pede para o candidato a vereador, no final de sua fala, pedir um voto para o candidato a prefeito da coligação. Mas esse caso foi bizarro. Ficou entre o puxa-saquismo e a inocência. Por quê? Porque o candidato a prefeito em questão foi aquele que praticamente substituiu Bejani na questão da campanha risível com propostas absurdas: Omar Peres. "Sou pobre mas não sou burro! Só trabalho com o que faz bem para a saúde: verduras, frutas... E na câmara não serei diferente. Estarei junto com Omar..." etc.

Acho que agora, passada a eleição, podemos dizer com convicção que a aventura política do dono da TV Panorama acabou. Ou pelo menos deveria acabar - no lugar dele, eu é que não me candidataria novamente. Embora Omar tenha acabado sendo punido por tentar difamar a imagem de outro candidato, seu maior crime foi outro: tentar repetir na "microestrutura" juizdeforana o que Silvio Berlusconi fez na "macroestrutura" italiana, ou seja, eleger-se. Seu castigo foi se tornar motivo de riso para a cidade inteira. Para quem não teve a oportunidade de estar em JF para tomar contato com as propostas "salomônicas" de Omar, enumero algumas. A primeira foi o Cartão Saúde. De maneira geral, parece que o tal cartão funcionaria como qualquer cartão de plano de saúde por aí. Com o detalhe de que as consultas e exames seriam pagos pela Prefeitura... De onde viria o dinheiro, ninguém sabe. Mais que isso: na necessidade de algum medicamento, haveria um convênio entre Prefeitura e Correios para que os mesmos fôssem entregues nas residências dos pacientes. Ainda na área de saúde, ele prometeu o Hospital da Zona Norte. Mas isso é até lugar-comum, pois todos os candidatos fizeram essa promessa - possivelmente, cada um tentando polarizar os votos de uns 25% do eleitorado. E a última promessa realmente "de vulto" feita por Omar foi o trem de superfície. A idéia parecia simples: voltar com o Xangai. "Só que mais moderno", como ele dizia logo antes de entrar a animação tosca de um trem-bala passando em frente ao Parque Halfeld. Juro que nem em meus sonhos mais absurdos isso já havia passado pela minha cabeça! A imagem era tão inusitada que, penso, se Salvador Dalí morasse em JF, ficaria com inveja! Para completar, após essa promessa, Omar disse que, enquanto o trem de superfície não se tornasse uma realidade, a MRS Logística (empresa proprietária da malha ferroviária que passa por Juiz de Fora) teria de compensar a cidade pelos transtornos causados por seus trens. E que isso seria feito cobrando pedágio de cada vagão que cruzasse a cidade. Com esse dinheiro, construiria casas populares - melhor teria sido dizer que financiaria o Cartão Saúde, mas isso é o de menos. Sinceramente, não sei quem Omar quis enganar com a história do pedágio do trem. É óbvio que a malha ferroviária não pertence ao município. Como ele pode querer cobrar pelo uso de algo que não lhe diz respeito? Se Omar alguma vez teve alguma chance nesse pleito, perdeu depois dessa proposta.

Que o trem é um transtorno, isso é verdade. Qualquer um que tem de passar pela rua Benjamim Constant por volta de uma da tarde sabe disso - tão bem quanto aqueles que passam pelo Mariano Procópio à uma e quinze. Proposta interessante para isso veio de Custódio: construir mergulhões e viadutos. Seria uma solução quase tão "salomônica" quanto as de Omar se não fosse pelo fato de Aécio Neves ter aparecido em pessoa na cidade (no alto de um palanque tucano) para dizer que há 43 milhões de reais prontinhos para serem investidos nessas obras - recursos do Governo Estadual. Pessoalmente, acho a notícia ótima! Não me consta que Custódio, como deputado federal, já tenha conseguido verba tão vultosa assim de uma vez. Mas como candidato a prefeito, tem feito um uso desta proposta que não vejo com bons olhos. A todo momento apelando para o fato de que Aécio é seu companheiro de partido, fala do dinheiro como um grande cheque-caução. Isso é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que escapa da inocência de Omar (mostrando a origem dos fundos), passa a impressão de que existe uma panelinha: o dinheiro existe, mas só virá para Juiz de Fora se Custódio vencer a eleição... Que cada um dê o nome que preferir a essa prática!

Tarcísio Delgado deu claros sinais de cansaço ao fazer uma campanha excessivamente emocional. "Eu amo Juiz de Fora" e afins. Além disso, cometeu um erro gravíssimo: pôs em dúvida a capacidade de "novatos" governarem uma cidade como Juiz de Fora. Foi como comer uma banana, jogar a casca no chão e pisar em cima. Tarcísio não esqueceu que um dia também já foi um "novato" como prefeito - embora tenha cuidadosamente omitido que, naquela época, Margarida Salomão fazia parte de sua equipe de governo. O erro maior de Tarcísio foi levar o tema para o debate final, na TV Panorama. Lá, na primeira rodada de temas livres, perguntou a Custódio o que ele achava do "reducionismo" que tinha roubado a cena na campanha. Evidentemente, Tarcísio tinha em mira os slogans de Margarida ("a fila tem que andar"), Omar ("chega de ex, agora é 43") e Rafael Pimenta ("pimenta neles"). Custódio se juntou a Tarcísio como se fizessem parte de uma sociedade secreta. Na réplica, Tarcísio disse que nunca ninguém conseguiu levantar qualquer motivo realmente forte para que ele não voltasse a ser prefeito, que os adversários diziam que ele não podia ser prefeito "porque já tinha sido prefeito" - o que era, como ele mesmo disse, uma atitude "irracional". Na rodada de tema livre seguinte, Margarida fez uma pergunta extremamente capciosa a Omar: perguntou-lhe se a experiência de empresário o credenciaria para ser prefeito. Omar, é claro, disse que "sim" (quase agradeceu a pergunta!) e desfraldou boa parte de seus feitos passados. Margarida, então, concluiu que "toda experiência é válida" e que "tão irracional quanto dizer que alguém não pode ser prefeito por já ter sido prefeito, é dizer que alguém não pode ser prefeito por nunca ter sido prefeito antes". Tarcísio segurou lágrimas de sangue durante o resto do debate. Acabou derrotado nas urnas. No segundo turno, seu filho, Júlio Delgado, conhecido desafeto do PT de Margarida, apoiou Custódio. O PMDB, no entanto, apoiou Margarida. Tarcísio, na última semana de campanha, seguiu o partido e declarou apoio a Margarida - retirou-se da política de forma elegante, afinal.

Rafael Pimenta (do PCB) fez uma campanha discreta. Fez muito menos vista que Victor Pontes, candidato do PSTU. Este, do alto de seus 21 anos de idade, mostrou um talento nato com palavras. Não foram poucas as pessoas que me disseram que apenas não votaram nele por causa do partido - o que certamente é um perigo, sendo ele um sujeito tão jovem.

Segundo turno: Margarida e Custódio. Lula - até então se mantendo afastado por seu enorme respeito a Tarcísio - entra na campanha de Margarida. A opinião das pessoas com quem tenho conversado sobre o assunto é de que Custódio tem baixado muito o nível da campanha. Eu digo, então, que ele se tornou um "bicho papão". E contra "bichos papões", façamos como o Harry Potter: na cara dele, digamos riddikulus!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Momentos

"Lembro-me de levantar certa manhã ao amanhecer. Havia tamanha sensação de possibilidade, sabe essa sensação? Eu me lembro de ter pensado: Este é o início da felicidade. É aqui que começa. E, sem dúvida, sempre haverá mais. Nunca me ocorreu que não era o começo. Era felicidade. Era o momento. Naquele exato momento."
(
As Horas)


Há algum tempo, tenho esbarrado nessa passagem. O filme é bom, o livro que lhe deu origem é super-premiado, há zilhares de passagens memoráveis e tal. Mas essa daí em especial... Na voz de Clarissa Vaughan (personagem de Maryl Streep) assumiu um tom de axioma: felicidade é isso e pronto. No entanto, por mais bela e reconfortante que seja, nunca me senti perfeitamente à vontade com ela. E para explicar a razão disso, peço licença para parafrasear o trecho acima:

Eu me lembro de uma noite em que Fábio, Janaína e eu resolvemos lanchar na esquina da Santo Antônio com a Rei Alberto. A limonada suíça veio terrivelmente amarga. Sabe quando a limonada passa do ponto? E lembro que Fábio e Janaína reclamaram do refresco, pediram mais açúcar e até água para o diluírem. Eu estava conformado. Janaína, então, disse que minha postura era felicidade. Não era o momento, mas o conjunto. A felicidade, afinal, era algo sereno, constante.

Essa foi a primeira vez que pensei na felicidade dessa forma. A outra vez foi em uma conversa que tive com meu orientador de doutorado... Estava ele, basicamente, reclamando da não-constância na velocidade com que meus resultados aparecem. Segundo ele, isso passa a impressão de que há momentos em que eu trabalho mais e momentos em que eu diminuo o ritmo. Cansaço? Sim... Mas poderia ser um certo "marasmo" também, despreocupação. Até seria justificado pelo que passei ano passado. O que realmente, admito, gera uma sensação daquilo que chamo felicidade. "Essas coisas pequenas... Esses probleminhas que não farão grande diferença se forem resolvidos ou não... Nada disso me importa. Só me importo com aquilo que realmente ameaça meu objetivo de vida".

Um momento, por favor, porque apareceram várias palavras-chave no trechinho acima: diferença, importa, objetivo e vida. Tenho escutado, com freqüência, pessoas dizendo coisas como "eu nasci para ser feliz". Não sei se é porque, mesmo sem me considerar religioso, sempre levei o Eclesiastes muito a sério, mas jamais ousei dizer coisa semelhante. Conceitos de felicidade existem aos montes. Cada ser humano mais ou menos "define" suas condições para a felicidade. O que acho muito curioso é que nunca encontrei alguém que se considerasse feliz! Não sabemos o que queremos? Ou será que a felicidade não é mesmo desse mundo?

Entendo a felicidade como um estado de espírito no qual há perfeita harmonia entre o ser humano e o meio que o cerca. Mais uma vez, o problema é o tempo. Se a nossa vida durasse um período de tempo tal que não nos fôsse possível experimentar um infortúnio, um revés, uma tristeza, talvez chegássemos a ser felizes. Como isso não é coisa que se verifique cotidianamente, jamais somos felizes. O nosso riso é, antes, um momento de alegria - essa, sim, a palavra. A vida é, então, constituída de momentos de alegria e tristeza; jamais de felicidade. Felicidade não é um momento!

A princípio, uma solução trivial para viver na felicidade poderia ser pensada como uma seqüência ininterrupta de momentos de alegria. O resultado dificilmente passaria de um filme do tipo Curtindo a Vida Adoidado, algo bem Sessão da Tarde. A pessoa vive um dia de satisfação e depois amarga o famoso comentário: "teve bom". Apenas uma recordação...

Haveria, então, uma solução para essa busca pela felicidade? Bem, desde que querer nunca é poder (se você quer e pode, você faz/tem; se só fica querendo, é porque não pode fazer/ter), acho que não... Mas há, ao menos, uma boa receita para se viver bem, num estado de serenidade quase-perene que eu, particularmente, acho muito bacana. A receita é conhecida da humanidade desde o século IV a.C.: "O sábio procura a ausência da dor, e não o prazer" (Aristóteles). É bacana porque as alegrias não apenas aparecem naturalmente no caminho (sem serem o objeto da busca!) como ainda tendem a ser mais duradouras. E só metade da felicidade, mas já faz um bem...

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Produto do meio

"I don't want to be a product of my environment. I want my environment to be a product of me"

Assim começa Os Infiltrados, um dos melhores filmes de Martin Scorsese. O que Frank Costello (personagem de Jack Nicholson) não sabia era o efeito filosófico arrebatador que a frase teria em mim!

Já perdi a conta das vezes em que ouvi alguém falar que "o homem é produto do meio em que vive". E até ver Os Infiltrados pela primeira vez, nunca tinha questionado isso. Tudo bem: o filme também não questiona! A intenção é meramente mostrar poder e tal... Mas o mais interessante não é o poder; é a inversão dos papéis. Costello queria que o meio em que ele vivia fosse produto seu, de sua personalidade, de suas opiniões, de seus desígnios. E incutido nesse desejo do gângster, apareceu o erro fundamental do "produto do meio": o homem não é produto do meio; mas uma média do meio.

Oh!, meu Deus! Mais um texto chato do Rafael, à base de uma estatística maluca que só ele entende porque só existe na cabeça dele! Não. Realmente não resisti a fazer a ressalva da média, mas o tema de hoje é a inversão de papéis. E nada de matemática!

Bem, a idéia básica de "o homem como produto do meio" é que o meio modifica o homem. Óbvio, mas precisava ser dito. A proposta de Costello é fazer o contrário: o homem modificar o meio. É uma proposta ambiciosa, pois pode chegar a ser até perigoso existir um homem com poder de modificar um meio - quem já viu Cidadão Kane? Quem não viu pode tomar uma boa base pelo que certa emissora faz com a opinião pública de certo país... "Santa ironia, Batman!" "Oops, I did it again..."

Depois de uns dez minutos de filme pausado logo após as "first lines", cheguei a uma conclusão: evolução existe. Acontece de uma maneira muito, muito peculiar. Funciona assim: no começo, existia o Meio e a Vida como coisas distintas. E até hoje são coisas distintas, mas não tão independentes quanto na Criação. A Vida teve de se adaptar ao Meio Físico para se tornar viável. E as espécies foram evoluindo em busca de uma melhor adaptabilidade ao Meio por milênios - Charles Darwin e sua "seleção natural" explicam isso maravilhosamente bem. Até aí, é sempre o Meio que manda na história. Em algum momento da evolução, surgiu um ser capaz de transformar essa via de mão-única numa via de mão-dupla: o tal do ser humano... Quando eu estava na 1ª série do Ensino Fundamental, meu livro de Estudos Sociais dizia que "o homem modifica o meio". Pronto. Taí. Alguém disse. O homem pode modificar o Meio. Mas isso é só a princípio, porque, na prática, modificar o meio ambiente se tornou uma coisa tão corriqueira para o ser humano que, hoje em dia, é difícil fazer alguma coisa que não o modifique.

Mas o ser humano vai além! Sendo, na essência, um ser social, ele naturalmente modifica seu Meio Social. E isso não dá pra evitar! O muito que Os Infiltrados fez foi colocar uma frase de efeito no começo, porque a idéia de "poder supremo" para influir e modificar o Meio, isso todo ser humano tem como conseqüência do fato de existir. É sério: mesmo que você não faça nada (o que é impossível), o simples fato de você existir e não ser completamente isolado do mundo já modifica o meio em que você vive! As outras pessoas te julgam e isso as modifica. E como as opiniões das pessoas modificam o Meio Social, dá até pra inverter o paradigma: o meio é produto do homem!

Mas calma aí! Ainda não acabou. É fato que as opiniões difundidas no meio em que um homem está inserido o modificam. O homem é produto do meio e o meio é produto do homem, portanto. Que paradoxo! Não, não: é só o âmago do processo evolutivo. Que é um processo cíclico e dinâmico. O meio modifica os homens. Os homens reagem e modificam o meio. O meio modificado, por sua vez, modifica os homens... E assim se cria um ciclo. Talvez seja isso que Franz Kafka quis dizer em O Processo... Estaríamos convergindo para algum ponto? Não sei. A resposta dessa pergunta é literalmente uma questão de crença. Sei apenas que as modificações, de parte a parte, acontecem tão rápido que não nos damos conta de todas.

E sei de mais uma coisa também. A capacidade do ser humano de modificar o meio está atrelada a algo que lhe é característico: a consciência. É ela que nos define como humanos. É ela que controla nossos atos, que molda nossa personalidade. E assim, por mais que o meio nos modifique, sempre conservaremos algo essencialmente nosso, próprio, único, conceitual, diferencial, distintivo. Contudo, esse "algo próprio" não é imutável. A diferença é que somente a própria pessoa pode mudá-lo. Para tanto, é preciso conhecer-se e ter a consciência de que se é mutável e mutante. E é somente aí que se tem, de fato, o tal do livre-arbítrio. E com isso, compreende-se que ele só vem ao preço de uma grande responsabilidade. Mas isso é outra história...

Olha, até que, só por essa reflexão, posso dar uma nota 9,0 pr' Os Infiltrados!

domingo, 27 de julho de 2008

Explicando "Lei de Murphy"

Quando escrevi o texto Lei de Murphy, tinha uma intenção: fazer (mais uma) piada sobre a Lei de Murphy. E escrevi apostando que qualquer pessoa, já na primeira leitura, entenderia minha intenção. Evidentemente, havia a possibilidade (hehe) de que algum romântico/carente/apaixonado não entendesse e me atacasse com paus, pedras e, dependendo do estilo da pessoa, flores.

É para os meus queridos leitores que não entenderam minha intenção (ou minha piada) que escrevo este texto: a explicação da mesma. Farei isso através da mensagem que uma amiga me mandou ao lê-lo. Disse ela:

" Esse texto é seu né..... espero mto que vc viva um desastre probabilístico, que ainda te tire do eixo e te faça ver a contradição.... e te faça escrever exatamente o oposto do que disseste... Porque..... a grande magia da coisa está exatamente aí.... todos podem definí-lo, mas ninguem o definiu melhor até hj do q como sua própria contradição..... Desejo, que vc tenha a quem amar.... e qdo estiver bem cansado.... ainda exista amor pra recomeçar....."

Bem, a primeira frase me fez lembrar da razão fundamental pela qual a Lei de Murphy é tida como a perseguidora implacável das 283.545 pessoas participantes da comunidade homônima no orkut: a gente sempre tende a lembrar mais dos momentos que consideramos ruins para nós, aqueles em que nos sentimos ridículos ou coisa assim. Pois bem: eu, como todo mundo, já paguei um baita mico. Foi em 2001, em um horário de almoço no Colégio Militar. Estávamos na sala: eu, Fábio Fortes, Márcio Maffili, Juliana e alguém mais. De repente, Juliana catou um toco de giz e começou a escrever versos no quadro negro. No final, apareceu um soneto. Não colocou título nem nada - só o soneto mesmo. E eu, que, naquela época, também arriscava uns versos e estava até recebendo alguns elogios da profª de literatura (a "Tixa", para quem se lembra), arrisquei uma de crítico literário. E como crítico raramente diz alguma coisa que presta, logo fulminei dois versos: "esses aqui são vazios". Juliana deixou que fizesse minhas críticas, mas depois, com um sorriso malicioso, desenhou um parêntese abaixo do soneto e escreveu "Vinícius de Morais"... Logo ficaria sabendo que aquele soneto que tinha tomado como sendo dela era, na verdade, o Soneto do Amor Total, um dos melhores sonetos de Vinícius de Morais... Daquele dia em diante, nunca mais me atrevi a falar nada sobre qualquer coisa cuja origem eu desconhecesse. E jamais criticar algo que não pudesse fazer melhor. Daí a estranheza que a frase "esse texto é seu né..." me causou: então, se não fosse meu, minha amiga não diria nada?

Embora reconheça que, de longe, a frase que mais chama a atenção em Lei de Murphy é "o amor é um desastre probabilístico", esta não é a frase fundamental do texto - esta é só a piada. A frase fundamental é: "É somente à luz das probabilidades que o amor adquire seu significado sublime", bem no começo do parágrafo da análise. A idéia era mostrar que o amor verdadeiro é uma coisa rara, difícil de ser encontrada - e até por isso, digna de admiração. Como mostrei no decorrer do último parágrafo, os números não favorecem o encontro dos amantes - no fundo, há muito mais modos de um relacionamento dar errado do que dar certo! E é essa a maravilha do amor: ele é uma catástrofe para as probabilidades. Se eu tivesse que apostar se um relacionamento qualquer daria certo ou errado, à luz das probabilidades, logicamente apostaria que daria errado. A maravilha é quando, apesar dos números "jogarem contra", o relacionamento dá certo! Ao se dar conta disso, você provavelmente pára, olha para a pessoa amada, reflete que nunca houve, não há e jamais haverá outra como ela, dá o maior valor a ela e aos momentos que já passaram juntos e, provavelmente, lhe chapa um beijo na boca muito mais consciente da sorte que deu. É nesse momento - em que a razão finalmente dá as caras e não consegue causar destruição - que o amor fica completo.

Mas, afinal, o que é o amor? Pediram-me uma definição. Todo mundo já tentou e ninguém conseguiu definí-lo de forma satisfatória. São tantas as suas facetas que muita coisa acaba podendo ser chamada de amor. Confesso que, certa vez, tentando definir essa coisa indefinível, pensei que a humanidade tinha "convencionado" não saber definir o que é amor simplesmente para poder dizer que muita coisa o é... Definição de amor? Gosto da de Machado de Assis: "a melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada...". Assim como também tenho a maior estima pela que, anos atrás, fiz em pleno auge de uma paixão:

O Amor não é definível. O Amor é calor, é calafrio, é admiração, é medo, é insegurança, é timidez, é dúvida, é atrapalho, é vontade, é receio. Amor não se define, se sente. E se sabe quando se sente. "Ninguém lhe diz que está apaixonado, mas você sabe que está". Então, estar apaixonado deve ser algo como uma crença: eu acredito que estou apaixonado e pronto. Eu me convenço que amo alguém. O Amor preexiste ao Amor. Nunca nos damos conta do momento em que começamos a amar. É um momento tão sublime que desligamos do mundo, esquecemos do tempo e queremos simplesmente ver, ouvir, cheirar, tocar, falar... pensar não! Somente depois, relembrando o bom momento, pensamos e nos damos conta, por força do hábito, de que nos apaixonamos. O Amor é construção.

Convenhamos que só alguém que estava vivendo um "desastre probabilístico" de "tirar do eixo" poderia escrever uma coisa dessas! É óbvio que, nesse contexto, o correto seria definir o amor como um "milagre probabilístico", mas aí não tinha piada... A conta ia ser exatamente a mesma, mas ninguém ia abrir um sorrisinho sequer...

Moça-que-me-mandou-a-mensagem: lembre-se de Oswald de Andrade:


Amor

humor

terça-feira, 22 de julho de 2008

Lei de Murphy

Outro dia, estava vendo o episódio piloto do seriado Dead Like Me - A morte lhe cai bem e me deparei com uma passagem muito interessante, em perfeita harmonia com o que estava pensando desde que acordei. A personagem principal, Georgia, fazia uma reflexão: "A vida me ensinou que interesse gera expectativa, e que expectativa gera decepção. Então a chave para evitar a decepção é evitar o interesse. A é igual a B, que é igual a C, que é igual a A, sei lá... Também não tenho interesse em ser uma pessoa boa ou má. Pelo que eu vejo, de qualquer jeito, você está ferrado. As pessoas más são punidas pela Lei da sociedade (cena de um ladrão sendo fuzilado pela polícia). E as pessoas boas (cena de uma mulher caindo da cerca onde tinha subido para tirar um gato da árvore) são punidas pela Lei de Murphy".

Momentos antes, estava pensando em algo que achei curioso. A Teoria da Relatividade tem seus limites de validade. A Física Quântica também. Não são completamente compatíveis uma com a outra. Existem situações que devem ser tratadas sob o ponto de vista relativístico e existem situações que devem ser tratadas sob o ponto de vista quântico. O que se sabe é que nenhuma das duas descreve a natureza perfeitamente. Chega uma hora em que não dá mais para aceitar uma delas e deve-se partir para a outra. Bem, o ponto é: são teorias extremamente abrangentes, mas nem de longe são incontestáveis. Coisa que a Lei de Murphy parece ser... E talvez esse seja seu aspecto mais sinistro: pior que as máximas "se existe a possibilidade de algo dar errado, dará" e "nada está tão ruim que não possa ser piorado" é a noção de que isso vale sempre, independente das peculiaridades da situação, da casca de banana no chão às balas "perdidas" nas favelas cariocas.

A Lei de Murphy é, essencialmente, uma lei probabilística. Ou melhor: é a Lei das Probabilidades. É ela que determina a probabilidade de um evento ocorrer ou não. E como a natureza se comporta dessa forma - ponto comum entre Relatividade e Quântica - é, no fundo, a Lei de Murphy que melhor a descreve. As piadas relacionadas decorrem do egocentrismo humano. Infortúnios cotidianos normalmente atribuídos à ação nefasta da Lei de Murphy são facilmente explicados quando observados do ponto de vista das probabilidades. "Ah, entrei na fila lenta no supermercado". Bem, quantas filas existem em um supermercado? Normalmente, várias. E somente uma pode ser a mais rápida. Logo, todas as outras são, comparativamente, filas lentas... Azar mesmo seria entrar na fila mais lenta! Mas é claro que só um cego vai achar que a fila rápida será aquela em que o típico "tiozão do churrasco" - aquele senhor de cabelos grisalhos, com uns "quilinhos" a mais extremamente mal-distribuídos, que, especialmente às vésperas de feriado, enche o carrinho de picanha, cerveja e demais apetrechos para churrasco; e "x" vezes em dez, para a compra com várias notas de R$10,00, frutos óbvios do rateio dos custos com vários amigos, todos quase tão folclóricos quanto ele próprio - segue o jovem pai-de-família fazendo as compras do mês com a esposa e o filho pequeno.

Mas se o problema fosse apenas essas situações que a Matemática tão gentilmente estampa nos exercícios de seus livros ("se um hotel tem três portas de entrada e dois elevadores, de quantas formas diferentes um hóspede pode chegar a seu quarto?"), nem estaria tão ruim assim. O problema é que a Lei de Murphy consegue o quase impossível: atribuir números para coisas que, normalmente, não são quantificadas. Tomemos, por exemplo, o amor.

É somente à luz das probabilidades que o amor adquire seu significado sublime. Para começo de análise, deve-se focar em um indivíduo qualquer. Esse perfeito fulano tem seus gostos próprios, suas preferências. Assim, é natural que se sinta atraído por determinado tipo de pessoa. Ora: assim como ele, as outras pessoas também têm seus gostos. Há uma probabilidade - e apenas isso - de que, entre as pessoas que atraem nosso fulano, exista uma beltrana que se sente atraída pelo tipo de pessoa que ele é. Calcular isso é, a priori, muito simples: o universo é o conjunto das pessoas pelas quais ele se sente atraído e o numerador é o número de indivíduos desse conjunto que se sentem atraídas pelo tipo de pessoa que o fulano é. O problema, é claro, é saber o numerador e o denominador. Por dois motivos. Primeiro porque, para não usar nenhuma aproximação, o conjunto universo do problema deve contemplar todo e qualquer ser humano que reúne as características pré-definidas como atrativas ao nosso fulano - sim, a menos que você tenha algo contra as asiáticas, a China é um problema. Isso pode ser solucionado assumindo que, para efeitos práticos, pode-se simplesmente fazer uma amostragem séria - e não tendenciosa, como as pesquisas eleitorais divulgadas por alguns periódicos de qualidade duvidosa... O segundo problema é conhecer suficientemente bem os indivíduos da amostragem para saber que tipo de pessoa os atrai. Além disso tudo, há ainda o patente problema de duas pessoas com esses gostos em comum encontrarem um ao outro, se conhecerem melhor e não descobrirem nada que considerem repugnante no outro. Então, as probabilidades do problema são três: primeiro, a probabilidade de encontrar um ser humano que atraia o nosso fulano; depois, a probabilidade de, entre os seres humanos pelos quais ele se sente atraído, existir um que se sinta atraído por ele; e por fim, a probabilidade de esses dois sujeitos se encontrarem e etc. Como os eventos são dependentes um do outro, a probabilidade total é o produto das probabilidades individuais. Ou seja: encontrar o "amor da sua vida" é quase como ter a Lei de Murphy agindo sobre si mesma, provocando um desastre em suas próprias probabilidades. Meu Deus: o amor é um desastre probabilístico! É mais fácil topar com um raio que com sua alma-gêmea! "Jogue suas mãos para o céu/ Agradeça se acaso tiver/ Alguém que você gostaria que/ Estivesse sempre com você/ Na rua, na chuva, na fazenda/ Ou numa casinha de sapê"!

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Síndromes curiosas

Há alguns anos, li no blog da Paulinha um interessante texto sobre o que ela chamou de Síndrome Nacional do "Menos Pior". Talvez seja a aproximação de uma nova eleição, ou o pressentimento de um novo desastre eleitoral, ou simplesmente um desejo irriquieto do meu gúliver, não sei, mas deu vontade de escrever sobre síndromes curiosas que acometem o ser humano e, em particular, os brasileiros.

  • Síndrome do segundo lugar

A melhor hora para se evidenciar essa síndrome é durante a apuração do desfile das escolas de samba.
Escola de samba é que nem time de futebol: tem torcida. Mas nem todo mundo torce para alguma escola em especial... Assim, quando a apuração vai ao ar na Quarta-Feira de Cinzas, um monte de gente liga casualmente a TV e desencadeia aquilo que chamo de síndrome do segundo lugar. Na indiferença sobre qual escola deve ganhar o carnaval, parece que tendemos a criar um enredo próprio para a apuração. A história do evento passa a ser mais importante que seu resultado. Queremos que ela seja a mais emocionante possível. E quem não se empolga diante da possibilidade de uma virada na classificação? Isso nos leva a "torcer" pela escola que, naquele momento, está em segundo lugar. É só pelo prazer de ver uma reviravolta, choro e ranger de dentes naqueles rostos que ainda há pouco cantavam vitória. Afinal de contas, pimenta, nos olhos dos outros, é colírio! Não se cria nenhuma simpatia pela escola "escolhida" e nem se dará alguma importância ao resultado depois, não importando qual seja.
Também é possível perceber tal síndrome em corridas de Fórmula 1 e praticamente qualquer outra disputa insossa que passe na TV em sábados, domingos e feriados.


  • Síndrome da festa infantil
É a síndrome que acomete a política brasileira. No Brasil, há três tipos de políticos: os que gostam de pizza, os que gostam de bolo e os que gostam de refrigerante. A associação é, respectivamente: governistas, oposição e resto. O curioso é que embora as pessoas e os partidos variem com o tempo, as posturas não. A oposição sempre vai fazer mil denúncias sobre pessoas ligadas ao governo, criando um "bolo" - curioso como é difícil ver o contrário... O governo, por sua vez, sempre vai querer defender sua própria imagem e levar o caso para a famosa "pizza". Nesse bolo, sempre há uma tendência ao exagero no fermento, com a instauração de CPIs e convocações de ministros da base governista. Se alguém cair, é vitória. E no meio dessa história, há aqueles que nunca são governistas e estão sempre dispostos a criar alguma efervecência em nome da ética: a turma do "refrigerante", que, hoje em dia, tem sua representação mais expressiva no PSOL. Sim, isso foi uma ironia: tanto governo quanto oposição desprezam a turma do refri. A criança mesmo não é importante - só a festa. E neste país em que se trabalha duro para que nada seja feito, reina uma democracia gorda, preguiçosa e desajeitada.


  • Síndrome do Salmo 91
Essa vale só para o Presidente da República e só quando a Globo gosta do sujeito: "mil cairão a tua esquerda e dez mil a tua direita, mas tu não serás atingido". Curioso é que a proporção é mais ou menos essa mesma... Lula tem demonstrado bem isso: divide um "mar vermelho" e é mais atingido nas peladinhas na Granja do Torto que na cena política.


Por hora, é isso. Se alguém souber ou detectar mais alguma síndrome curiosa, por favor, me comunique!

terça-feira, 8 de abril de 2008

O almoço

Há certas coisas que mudam a gente. Naquela manhã, acordei diferente e me comportei como de costume. Levantei, tomei um banho, desci as escadas, tomei o desjejum, voltei ao meu quarto e troquei de roupa. Até aí, tudo mecânico. Foi na hora de calçar o tênis que as mudanças começaram a se manisfestar. Olhei para a calça verde levemente desbotada (de propósito) e decidi que não usaria o tênis de sempre. Peguei emprestado o All-Star de meu pai: sim, meu pai tem um! E o clássico ainda por cima, preto! Camisa preta com detalhes verdes, um sujeito "fashion", só faltando óculos escuros e Sweet Child O' Mine nos fones de ouvido, lá fui eu pra universidade.

Na hora do almoço, indo para o RU, me vi diante de uma cena vivida dois anos e meio atrás. O mundo não era mais o mesmo porque eu, para variar, sabia o que não devia: os mistérios da vida e da morte. Novamente eu sabia que alguém tinha morrido. Dessa vez, porém, não era surpresa. Da outra vez, tinha sido absolutamente chocante constatar o fato porque nem de longe o esperava. Depois, acabou parecendo plausível... Como o de agora. Ninguém ligado à universidade, dessa vez. O nome dele é Felipe. Mas antes fosse aquele Felipe de alguns textos atrás. Esse é de carne e osso. Carne, osso e sangue. O ser cuja existência parecia ter como único propósito me dar um puxão-de-orelha. Rafael, é feio criar um alter-ego. As pessoas não aceitam bem isso... Deus o moldou à perfeição, como Lhe é peculiar. Começou pelo nome. Depois, o resto. Felipe tinha exatamente a mesma doença que eu. Tratava com a mesma médica, inclusive. Os pormenores do caso diferem muito pouco para serem apreciáveis. Como o Felipe detetive, convenientemente quatro anos mais velho, também... Em uma das consultas de controle, minha médica comentou sobre ele e pediu que minha mãe e eu "déssemos uma força" a ele. Fui à casa dele. Quando ele veio atender a porta, quase caí duro: Felipe era um homem! Tinha corpo, falava, andava, pensava... Felipe vivia! Quero dizer: o Felipe que eu criei! Estava ali, parado na minha frente, sem tirar nem pôr, e passando pelo mesmo problema que eu - com o mero atraso de alguns meses. Era como se a parte de mim a que chamo "Felipe" tivesse saído do meu corpo como um vapor, se condensado e virado outro ser humano. Obviamente, ao que pude constatar durante a conversa, a personalidade do personagem e do homem eram completamente diferentes. Enquanto um esbanjava uma auto-confiança até irritante (a famosa "marra"), o outro segurava a tensão como uma pessoa com Mal de Parkinson segura um copo d'água. Naquele momento, soube que Felipe tinha uma postura potencialmente perigosa para quem ia se submeter a um transplante de medula óssea. Duas semanas depois de sua internação, ele veio a falecer. Já tinha passado a fase da quimioterapia e até o transplante em si. Mas o perigo é constante naquele tratamento: mesmo uma semana depois, os quimioterápicos ainda estão lá, ativos e perigosos. Na verdade, eles ficam agindo por alguns meses, mas é melhor nem falar disso... Resultado: o coração de Felipe não agüentou.

Como da outra vez, minha tristeza fazia os sorrisos alheios parecerem insultos. Novamente pensei no jejum de carne. Entrei no RU. Havia outras quatro pessoas comigo e me sentia sozinho. Felipe não me saía da cabeça: como era possível? Um rapaz aparentemente tão forte... Seria assim tão decisivo o fator psicológico? Eu custava a acreditar...

Coloquei a bandeja sobre a mesa e me sentei. O mundo sumiu e apenas vi meu prato. Temperei a carne com pimenta vermelha e ataquei-a como um canibal. Quando por mim rezaram e me salvaram, quando alguém foi embora (mas não) para sempre, ou percebi o que de melhor me restava, ou quando soube que essa era a única forma de não morrer eu como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Puxo o prato, aceito a carne e seu sangue.*

*: recomendo a leitura do conto "O jantar", de Clarice Lispector.

terça-feira, 11 de março de 2008

Leaving Neverland

Certa tarde eu estava no terraço de casa e vi uma pipa voando. O sol estava se pondo atrás de um morro em sua eterna rotina. A pipa era de um vermelho vivo feito sangue arterial e riscava o céu avermelhado de inverno em improváveis acrobacias. Olhei em volta: ninguém à vista. Nem em casa, nem em qualquer lugar das redondezas. Permiti-me deitar no chão e ficar observando a pipa.
Pensei na magia por trás daquele objeto tão simples e - paradoxalmente - tão complexo. Durante todo o período que, até então, tinha chamado de infância, nunca tive muita vontade de soltar pipa. Afinal de contas, que graça há? Foi somente aí, ao me fazer, pela primeira vez, essa pergunta de forma explícita, que percebi o que havia de tão mágico em uma pipa. A graça não está em soltar, em empinar a pipa; mas em fazer a pipa. A escolha do papel, a armação das varetas, a colagem, a rabiola... Só as crianças sabem fazer pipas de verdade. Porque uma pipa é, antes de tudo, o mais perfeito retrato da alma da criança que a fez. Talvez tenha sido por isso que nunca consegui ver graça na brincadeira: nunca tinha sido eu mesmo que tinha feito a pipa. Mas isso, por si só, não explicava minha comoção.
Aquela pipa não estava solta. Amarrado nela havia um cordão, uma linha. E na outra extremidade daquela linha, havia, certamente, a mão de uma criança. Essa era a mágica! Embora não pudesse ver a criança, percebi a linha como um prolongamento de seu braço. E sendo a pipa o retrato de sua alma, aquilo era voar. Naquele momento eu atinei para a verdadeira graça de soltar pipa. Até então, pensava que somente a pipa se divertia, pois somente ela voava. Mas não! Fazer a pipa dançar no céu era soltar a própria alma, era liberdade! As improváveis piruetas que a pipa descrevia não eram nada senão a própria imagem das revoluções da alma da criança que a segurava do outro lado da linha. E pensei que nunca tinha sido criança realmente.
Depois daquele dia, vieram primaveras e bichos de goiaba. Ambos me mostraram que ainda tenho muito em que pensar. E que, por sorte, de algum modo, ainda conservava algo de essencialmente infantil em mim. Um certo prazer por coisas que ninguém mais entendia, por assim dizer. Ainda conseguia me surpreender com o mundo à minha volta. Por alguns instantes, conseguia mesmo deixar de ser sério. Talvez seja por isso que todos me julguem esse "quadradão", "nerd" e o que mais se queira. Porque pouca gente ainda tem os ouvidos necessários para ouvir as gargalhadas de minha alma.
Mas tudo isso mudou. Depois de minha defesa de mestrado, não tive um único dia inocente mais. Se antes eu dormia às duas da manhã e levantava correndo no dia seguinte, hoje durmo cedo para acordar cedo, para não me atrasar para meu compromisso com a rotina. Ser adulto é saber não-viver e ter a consciência de que não se vive.
Outro dia estive vendo um trecho de Peter Pan. Sempre foi minha história infantil favorita - uma das poucas coisas que me fazem acreditar que fui criança quando deveria ter sido. Depois, como não consegui ver o filme todo, apelei para a melhor aproximação que dispunha: Em Busca da Terra do Nunca. Bem, falando como crítico de cinema, chega até ser melhor ver o filme do Johnny Depp. Parece ter sido o único filme que, de fato, captou a quintessência da história. Quando crianças, não queremos dormir com medo de ficarmos velhos. Mas o tempo, implacável, nos persegue. E quando ficamos velhos e podemos ficar acordados até tarde, sentimos vontade de dormir, na esperança de voltarmos a ser crianças por um piscar de olhos que chamamos sonho...

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

"Quem não cola..." (21/12/04)

Eu não sei se deveria escrever este texto. Talvez não seja uma boa idéia... Talvez ele só desperte o interesse de fiéis (proprietários ou não) da Igreja Universal. Em todo caso...
Ontem, tive prova de Mineralogia. A terrível Mineralogia! De longe, a pior disciplina do curso de Química. Não há como ter algo pior que Mineralogia! Não há como existir um professor que se pareça mais com uma múmia do que o Sebastião! Absolutamente não há.
O problema da Mineralogia é as provas. Não há como um ser humano normal fazer as provas do Sebastião da maneira como elas deveriam ser feitas. Tirar cem? - impossível! Por quê? Simples: o Sebastião é irredutível, o tipo de professor que pede a definição de um conceito e não aceita uma resposta que não seja exatamente igual àquela dada em aula, sem tirar nem pôr. O que deixa os alunos com apenas duas maneiras de ir bem na prova: decorar ou colar. Como colar não é lícito, o aluno é obrigado a decorar todos os conceitos - que são muitos. Além disso, é uma disciplina oferecida para o curso de Química, no qual os alunos aprendem a entender o conteúdo, não decorá-lo. É uma questão do método do professor não estar em acordo com a filosofia do curso. Então, como explicar as notas maravilhosas que vários alunos obtiveram em períodos anteriores?
Certa vez, durante uma das aulas depois da primeira prova, uma de minhas colegas de sala acabou, sem querer, se entregando quanto à cola. Vítima da perversidade? Sim, um claro exemplo. Poderia mesmo dizer que idêntico ao narrado por Edgar Allan Poe em seu conto "O demônio da perversidade". E ontem, várias pessoas foram vítimas da perversidade do Sebastião...
Começa a prova. Alguns conceitos, algumas coisas que deviam ser decoradas, alguns exercícios de cálculo (poucos e idênticos aos de uma das listas) e um monte de gente com cola preparada. Antes da prova, pedimos para que a mesma fosse de consulta - há relatos que o Sebastião já deu provas assim. Pedido negado... No entanto, estava mais do que claro que a intenção da turma era fazer uma prova de consulta - ainda que não oficialmente...
Comecei minha prova por um exercício de cálculo. Simples, mas nem tanto. Depois, passei a uma questão de conceitos: as definições de intemperismo, diagênese e metamorfismo. Tinha comentado com uma amiga, instantes antes do início da prova, que era bastante provável que tais conceitos fossem cobrados. E assim, anotei-os nas costas de minha calculadora - a lápis! Como a calculadora era escura, mal dava para eu ler o que estava escrito - além de ser facílimo apagar... Pois bem, tinha apenas essa questão inteira na cola. Por sinal, era a primeira - e única - vez em que estava usando cola na universidade! E somente estava fazendo isso porque, com a louca decisão da UFJF de acabar com a prova final, estava seriamente ameaçado de ser reprovado em tão "ridícula" disciplina - imagine: passar com 89 em Quântica e ser reprovado em Mineralogia! Justo eu, que repudio quem se usa de método tão pouco honesto, estava colando na prova... Não estava sendo eu mesmo.
Mas acontece que eu não sei colar. E assim, me sentei de frente para o professor, só que na segunda fileira. Seria facílimo ele levantar os olhos dos papéis sobre a mesa e me pegar olhando muito sugestivamente para o verso de minha calculadora, que não devia ter nada de interessante. Estava acabando de escrever o último conceito. Sebastião se levantou com cara de desconfiado. Andou pela turma e parou ao meu lado, de onde começou a olhar minha prova, sem sequer se dar ao trabalho de despistar. A calculadora, prova cabal de minha culpa, no meu colo, ainda virada de costas, com a cola voltada para mim. O Sebastião olhando... Comecei a, lentamente, abrir as pernas e deixar a calculadora escorregar por entre elas, na tentativa desesperada de esconder o verso incriminador. E então, subitamente incomodado, olhei para Sebastião. Encarei-o de baixo para cima. Ele perguntou se estava tudo bem. O que dizer? Respondi na afirmativa. Ele começou a andar pela turma. Terminei de escrever o último conceito e logo passei a outra questão de cálculo, usando a capa da calculadora para esconder o verso da mesma. Não tive coragem de tentar apagar o que estava escrito lá. Alguma coisa me dizia que os olhos de Sebastião agora estavam pregados em minhas costas, atentos a qualquer movimento suspeito meu. Tive a nítida impressão de que ele nunca tinha ido com a minha cara, desde o primeiro dia de aula. E então, Sebastião volta à frente da sala e diz que sabia que algumas pessoas estavam de posse de material não permitido para a realização da prova (ou seja, cola); diz que isso o obrigará a corrigir certas provas com mais rigor, caso tais pessoas não entregassem o material a ele. Senti que ele estava falando aquilo para mim. Logicamente, eu sabia que muitas outras pessoas estavam com cola. Mas pela primeira vez, a conhecida frase - agora dita pelo improvável Sebastião - também se aplicava a mim. Era uma sensação horrível. Senti-me sujo, com nojo de mim mesmo. E na mesma hora tive o ímpeto de entregar a calculadora. Mas então me lembrei que ainda tinha mais uma questão de cálculo para fazer e que precisava dela, ainda que não do verso. Mas estava decidido: eu confessaria minha culpa.
Momentos depois, a colega que já tinha "se entregado" da outra vez se levantou com alguns papéis na mão e, com um sorriso insano e desesperado no rosto, os entregou a Sebastião. Ela tinha se entregado. Seguindo o exemplo da amiga, outra colega aproveitou a deixa e fez a mesma coisa - entregando uma tira de papel tão fina e pequena que eu nunca teria visto. E Sebastião, ao receber os papéis, diz ameaçadoramente: "E ainda tem mais gente...". Tive a impressão de que ele poderia estar "jogando verde", mas eu sabia que ele sabia que eu estava com cola. E também sabia que mais pessoas estavam com cola - ele deveria saber disso também.
Continuei fazendo minha prova. Estava na última questão de cálculo. O então presidente do DA resolveu se confessar também: entregou um maço de folhas dobradas ao Sebastião, que mais uma vez reforçou a lição de moral.
Terminei a última questão de cálculo. Nada mais me impedia de entregar a calculadora. Mas não a entreguei... Larguei-a, com nojo e medo, na cadeira vazia a meu lado. O verso incriminador, evidentemente, virado para baixo, escondido. Vivi momentos terríveis a partir de então. Sim, eu soube como o personagem de Poe se sentiu... Senti uma incontrolável vontade de me acusar, de acabar com aquilo de uma vez. Mas então tive a impressão de que, apesar de tudo, estava em segurança - quem sabe o Sebastião, no fim das contas, não tinha visto nada e tinha sido um mero acaso ele ter parado ao meu lado? Metade de mim achava que tinha sido um acaso, e a outra metade levantava provas e mais provas de que não tinha sido mero acaso. E assim, fui fazendo a prova. Pouco a pouco, fui me controlando melhor. Não que tenha ficado calmo, mas mais próximo do pleno autocontrole novamente. Vivendo esse conflito interior, respondi a algumas questões da prova. Nenhuma certeza. De nada. De nada.
E quando faltava apenas uma questão para responder, tomei uma decisão. Se eu terminasse a prova e mostrasse a calculadora para Sebastião, ele poderia pensar que eu teria feito toda a prova com ajuda da cola (o que não era verdade). Por outro lado, se eu a entregasse naquele momento, quando já não precisava mais dela, ele poderia analisar a cola e ver que só a poderia ter usado em uma questão e meia. Um colega o chamou para tirar uma dúvida. Então, enchendo-me de coragem (ou loucura, pois era um caso em que era difícil fazer a distinção), levantei o braço. Sebastião novamente parou ao meu lado, agora aparentemente esperando que eu lhe perguntasse algo sobre a prova. Mas o mal estava feito. Naquele instante, percebi que minha confissão, agora irremediável, era inútil! Ele nunca tinha percebido que eu estava colando! Talvez tivesse passado por sua cabeça, sim; mas ele não tinha visto nenhum papel comigo! Sem graça (e sem a malícia de inventar uma pergunta qualquer na hora), mostrei a calculadora a Sebastião, que perguntou se eu estava querendo emprestá-la a alguém. Neguei e me entreguei. Ele não ouviu e perguntou se eu estava dando a calculadora para ele. Nem me ocorreu que o tipo de cola que estava usando devia ser sofisticado demais para um sujeito que dava aulas com transparências "artesanais" (plástico transparente escrito à mão, com pedaços de papelão para fazer as bordas) e, eventualmente, um tripé! - tudo isso na era dos laptops, datashows e humildes pointers... Novamente vítima da perversidade, cuspi toda a história.
Para o ser humano, nada é mais autodestrutivo que a confissão. Nada. Porém, nada há que seja mais edificante também. No momento de minha confissão, me senti honesto novamente. Enfim tinha voltado a ser o homem que sempre fui.
Mas aí a situação tinha mudado. Antes eu tinha a (falsa) certeza de que teria minha prova corrigida com rigor porque Sebastião sabia que eu estava colando. Agora, então, eu tinha a certeza de que teria minha prova corrigida com mais rigor porque contei a Sebastião que estava colando. Tudo bem que agora eu tinha a honestidade a meu favor, mas, com certeza, não mais poderia tirar cem naquela prova. No muito, noventa. E eu precisava de nota. No dia seguinte, vi que tinha tirado 62 na prova e passei com 69 de média. Nunca mais quero (o tempo verbal aqui é um eterno presente mesmo) ver o Sebastião - ele é a imagem viva(?) da minha culpa.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Rafael x Felipe - num dia qualquer

- Todo mundo tem a capacidade de analisar coisas. "Vem de fábrica" no ser humano... Mas só vai aflorar e se transformar em algo realmente útil nas pessoas com propensão a exercitar o cérebro.
- Em outras palavras: só pode ser detetive quem estiver disposto a ser detetive. É isso?
- Exatamente isso, meu caro Rafael.
- Mas, de certo, você concorda que isso tem o seu preço. Não sei se o que vou falar é correto... Admito francamente que talvez não tenha essa "capacidade analítica" em nível elevado o suficiente para argumentar sobre o caso... Mas me parece, caro Felipe, que há um ônus em exercitar a mente. Você certamente conhece a famosa "lei do uso e do desuso", não conhece? Sinceramente, nunca vi razão alguma para essa lei não ser aplicável, também, ao cérebro. Notoriamente, quanto mais você se dedica a pensar, mais hábil fica nisso. Isso se chama experiência. Você já leu O retrato de Dorian Gray? Não? Pois deveria! É um livro assustadoramente bom! Bem, na verdade, o Dorian Gray é um mala-sem-alça e é um amigo dele que "salva" o livro, mas isso não importa. O que importa é a sagacidade de Oscar Wilde ao propor uma troca fantástica: logo no começo do livro, um amigo de Dorian Gray lhe pinta um retrato seu. Daí ser "o retrato de Dorian Gray"... Mas mais importante que isso é que Dorian Gray era um homem muito, muito bonito... Tá, eu sei que você acha tudo isso uma grande viadagem, mas ouça! Não era um retrato comum. Sobre ele, pairava um feitiço. Tá, eu sei que você não acredita nessas coisas, mas ouça porque o importante é a idéia! O retrato de Dorian Gray ficou absolutamente perfeito e havia uma razão para isso. E a razão era que, de certa forma, o retrato era Dorian Gray... Quer dizer, o homem e o retrato partilhavam uma relação única, mágica. Sabe aquela expressão "vão-se os dedos; ficam os anéis"? Não é o que acontece com a gente quando vê uma foto da nossa infância? Ou então quando ficamos velhos... É a mesma coisa! A nossa juventude é roubada pelo tempo, mas a juventude de uma figura num retrato, não... Imagine, então, como seria interessante se o retrato tivesse vida... Se o retrato pudesse ver, andar, pensar... Seria um ser imortal! E é exatamente isso que acontece no livro. Dorian conserva sua juventude enquanto o retrato envelhece em seu lugar! Assim, Dorian se torna imortal. Bem, só li até aí. Mas pense nas possibilidades de ser imortal. Não tendo mais que se preocupar com o tempo, você pode, simplesmente, "virar uma biblioteca". Essa eu tenho certeza que você conhece: a música do Raul Seixas que se chama "Eu nasci há 10000 anos atrás". Um pedaço do refrão é "e não há nada nesse mundo que eu não saiba demais". É essa a questão, Felipe: saber! Certa vez, um filósofo inglês chamado Francis Bacon disse: "Saber é poder". Quando se está livre do tempo, você se torna mais e mais poderoso à medida que adquire conhecimento, experiência. A gente tem um vislumbre disso mesmo em nossas curtas vidas. Quantas vezes você já resolveu um caso "por comparação" com outro? Aposto que algumas... Sabe, as pessoas "pensam igual" em alguns pontos fundamentais... A gente vai ficando mais maduro com o tempo e começa a fazer nosso trabalho com mais destreza, "percorrendo os atalhos", por assim dizer. E se o seu trabalho é pensar, descobrir, então eu acho que quanto mais se dedica a isso, mais viciado você fica em desvendar tudo o que lhe dá a mínima sensação de mistério. Estou certo?
- Nem tanto, Rafael. Sabe, às vezes a gente cansa...
- Pois é... Não somos imortais como o Dorian...
- Mas não dá pra negar que o que você disse sobre a experiência nos tornar mais ágeis é verdade.
- Sim, isso eu já sabia. Mas a minha questão, no fundo, é a seguinte: eu acho que todo detetive deve, antes de ser um bom analisador, ser um excelente observador. Porque, afinal de contas, como ele vai analisar se não consegue ver, não é mesmo?
- Desculpe te interromper, Rafael, mas tem jeito sim. A Virgínia é a pessoa pra te falar sobre isso. Mas devo dizer que essa habilidade de analisar sem ver só é possível para quem tem muita experiência.
- Sim, a Virgínia é excepcional mesmo... Mas, enfim, o que eu queria dizer é que você precisa estar atento para o que está acontecendo. Sabe, ver as coisas... Ou melhor, reparar nelas. Você já viu O Fabuloso Destino de Amélie Poulain?
- Não.
- Jura? Em que planeta você vive, Felipe? Depois me lembre de te emprestar esse filme... Talvez você não goste muito, mas tenho certeza que a Virgínia vai amar. Ela vai se identificar muito com a Amélie... Bem, o importante é que a Amélie Poulain diz que gosta de reparar em pequenos detalhes que ninguém mais vê. Sabe, uma coisa que chamaria a atenção dela seria se ela estivesse assistindo a um filme e de repente aparecesse uma mosca voando na tela. Não, não no cinema, mas no filme. Seria um pequeno defeito do filme: enquanto a cena era filmada, uma minúscula mosca resolveu dar uma de atriz... Sendo muito pequenininha, passou despercebida a toda equipe de produção e foi parar na telona sem ao menos receber algum crédito... Mas mesmo uma mosquinha de nada fica grande o suficiente para ser vista numa tela de cinema... O caso é que como a nossa atenção está desviada para a ação, para as personagens, para a história, a gente nem repara naquela pequena mosca fazendo uma pontinha. Enfim, há certas pessoas com essa capacidade de reparar em pequenos detalhes extremamente apurada. E isso dá uma outra visão de mundo para elas...
- Você é uma dessas pessoas, certo?
- Creio que sim... Lógico que um monte de coisa me passa despercebida num primeiro momento. Mas se tenho a oportunidade de olhar novamente... É difícil eu não encontrar algo curioso e até meio poético!
- Poético?
- É, poético, por assim dizer.
- Como o quê?
- Quer ver, hoje mesmo me aconteceu uma coisa dessas. Você sabe que eu tenho um blog, não sabe? Então, uma coisa que eu tenho pensado em fazer é "me tirar" do blog, parar de falar de mim. É meio difícil e até um pouco sem sentido se você considerar que a coisa chama "Jarro de memórias"... Mas, enfim, estou pensando em escrever crônicas sobre o que tenho visto na rua. Tudo bem que é exatamente isso que tenho feito, mas queria fazer de uma forma diferente. Até agora, tenho sido, salvo raras exceções que não foram percebidas pelos meus poucos leitores, personagem das minhas crônicas. E não quero mais isso. Acho que me exponho demais procedendo assim... Quero simplesmente testemunhar uma cena qualquer e descrevê-la artisticamente, como quem pinta um quadro. E de preferência, impressionista. Hoje eu estava descendo o Morro da Glória, indo para a Cultura Inglesa. Estava passando em frente a uma lanchonete quando a moça jogou água no chão para lavar o piso. Só que a água escorreu para a calçada e foi correndo em direção à rua. Bacana foi como ela fez isso. A água não chegou até a calçada como uma onda, mas em pequenas ondinhas, e foi se espalhando de forma desigual... Em algumas regiões, formava um pequeno "rio", uma protuberância da poça maior. Não sei porque, mas aquilo me lembrou cobras rastejando. E logo pensei em como descreveria aquela cena no blog: e a água se espalhou pela calçada feito serpentes na areia quente.
- É, tem um quê de poesia...
- Você já leu Hemingway? Não? Tá, tudo bem, eu também não... Mas você já viu o filme Cidade dos Anjos?
- Você sabe que detesto esses filmes melosos...
- Eu também não sou muito chegado... Vi só um pedaço, há muito tempo, porque coloquei num canal de TV a cabo e estava passando. Daí, como parecia ser o filme mais comum de se encontrar nos perfis das mulheres que eu conhecia, fiquei vendo. Além do que, a música-tema do filme é "Iris", do Goo Goo Dolls. Nem é tão boa assim, mas chama "Iris". E você sabe que eu tenho a maior queda por esse nome... É o nome que daria a minha filha se algum dia fosse ser pai.
- Nada te impede de ser pai.
- Não é recomendável depois da quimioterapia do transplante.
- Adote.
- É, confesso que já pensei nessa possibilidade. Mas só vou me arriscar a isso depois de estar devidamente casado.
- Entendo, mas sobre o filme...
- Ah, sim, é um filme sobre um anjo (o Nicholas Cage) que vem à Terra para ajudar uma médica (a Meg Ryan). O filme é ruim, mas tem um pedaço que fiz questão de não varrer da memória, um pedaço em que os dois estão em uma biblioteca e o Nicholas Cage pega um livro do Ernest Hemingway e chama a atenção dela para a forma como o Hemingway descrevia as coisas. Ele tinha uma preocupação toda especial em descrever o gosto das coisas, o formato das coisas. Era minucioso. O tipo de cara que esqueceria a Marilyn Monroe se visse uma mosca voando do outro lado da tela... Bem, o importante é que o Hemingway era um cara que abusava dos adjetivos. E isso é uma coisa que eu tenho a maior dificuldade de fazer! Se você gravasse essa nossa conversa e depois a visse transcrita, poderia perceber que é muito difícil eu usar um adjetivo. É justamente por isso, por perceber que tenho dificuldade para usar adjetivos, que fico pensando neles quando escrevo para o blog. Você pode reparar que não disse "como serpentes na areia", mas "como serpentes na areia quente". Eu poderia ter ficado só com "como serpentes na areia", mas achei que a combinação do adjetivo com a metáfora daria um tom mais poético à coisa.
- E deu mesmo...
- Mas por que a gente estava falando disso?
- Você estava dizendo que as pessoas observadoras vêem o mundo de forma diferente.
- Ah, sim! É verdade! A gente vê "ângulos em uma estrela e Deus no infinito"...
- Depois dessa, Rafael, só com uma frase do Jonas mesmo: "Humanos"...

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Filosofias de um homem que anda sozinho

Era um daqueles dias em que até o Sol luta por seu lugar. Daqueles em que as nuvens se rebelam, se aglomeram e, tal qual titãs atacando o Olimpo, subjugam Apolo. Daqueles em que o céu chora de mansinho, como se um corte fino e longo o fizesse sangrar gota após gota. Era, também, a "deadline" de minha dissertação de mestrado. E havia algumas páginas a serem escritas...
Acordei tenso, com o peso dos últimos dois anos nas costas. Finalmente era chegado o momento de mostrar ao mundo o que fiz nesse tempo. Era hora de publicar - sempre lembrando que, como diria Machado de Assis, "o pior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado". E havia um pecado do qual eu não podia fugir: minha displicência.
Sempre defendi a tese de que tudo aquilo que realmente vale a pena na vida pode ser expresso na forma de um quociente. E o exemplo que sempre citei quando me pediam um era o talento, que defini como o quociente da relevância do trabalho realizado pelo tempo empregado em sua realização. A idéia está longe de ser original: existe desde que alguém percebeu que era interessante comparar o custo de determinada coisa com o benefício que ela proporciona.
O que me chamou a atenção para essa idéia do talento, em particular, foi, sem qualquer modéstia, eu mesmo. Meus resultados, principalmente na graduação. Quantas e quantas vezes ouvi alguém dizer que tinha estudado tantos e tantos dias, virado tantas e tantas noites estudando para aquela prova... Aquela mesma para a qual eu separei duas ou três horas da véspera para me preparar. Aquela mesma que eu fui bem e o(a) fulano(a) que estudou muito mais foi mal. Essa situação foi tão incomodamente freqüente em minha graduação que não pude deixar de notá-la como a causa do estranho constrangimento que por muito tempo andou a meu lado. Meu truque, é claro, sempre foi usar meus talentos. E foi somente aí, quando percebi isso, que comecei a temer ainda mais o confronto com a máxima "conhece-te a ti mesmo".
O problema de conhecer a si mesmo é reconhecer seus próprios defeitos e limitações. É por isso que, embora não acredite na palavra, coloco minha displicência como meu grande "pecado" nesses últimos dois anos. Porque uma coisa que eu tive foi tempo para pensar. E o que é muito pior: tempo para fazer! Hoje vejo que aquele dia só foi tão desesperado porque eu, simplesmente, deixei tudo se acumular nele. Se tivesse dividido o trabalho em doses homeopáticas nos dois anos de meu mestrado, poderia ter feito absolutamente tudo dentro do tempo e sem correria. Posso até reconhecer que tenho talento suficiente para levar um mestrado em meio a sérias adversidades, mas essas não servem de desculpa para mim. A razão de meu atrapalho e conseqüente insatisfação com o resultado de meu trabalho foi, nada mais, nada menos, que minha displicência. Se tivesse feito tudo com seriedade e aproveitado meus talentos como deveriam ser aproveitados, poderia ter feito um trabalho muito melhor. Não o fiz porque sempre usei meus talentos para ganhar "horas bônus" em diversões que nem eram tão necessárias assim. Pelo menos meu boliche melhorou nesses dois anos!
Para remediar as dores que minha displicência agora causava em minhas costas, resolvi ir mais cedo para a universidade. E mais que isso: pela primeira vez nos últimos dez meses, almoçar por lá. Entrei no laboratório às onze da manhã. E me arrependi disso cinco minutos depois, quando me deparei com um enjoado problema técnico. Pior é que, ironicamente, poderia ter feito o que precisava de casa mesmo e não teria o problema... Mas isso é o de menos.
Foi em meu almoço "filosófico" (Kierkegaard ficaria orgulhoso!) na By Jack do ICB que esse texto nasceu. Ali, no tão inusitado quanto estranhamente natural confronto de tons entre o feijão-com-arroz e o strogonoff de frango que eu percebi que estava sozinho. "Mesa para um", eu pediria a um garçom se fosse um restaurante e houvesse essa necessidade. No prato, as duas realidades que eu via: o trabalho "basicão" que estava fazendo e o "sofisticado" que poderia ter feito. Se entrelaçavam, mas não se confundiam em cor, sabor e textura. Um era um, o outro era o outro e eu estava sozinho. Simultaneamente culpado e única testemunha de meu crime mais que imperfeito: um tiro no próprio pé!
Ferido em meu orgulho, subi, cambaleante e despreparado, as escadas de volta ao ICE. Todo o processo de meu almoço durou cerca de quinze minutos. Voltei ao laboratório e trabalhei com afinco até as cinco da tarde, quando finalmente a última folha impressa de minha dissertação repousou sobre as demais. Entreguei o trabalho ao meu orientador para eventuais correções. Ainda não era a versão definitiva, mas pouco deveria mudar.
Na saída, eu e uma amiga (a única outra pessoa que ainda estava no laboratório), pegamos carona com nosso orientador. Ela desceu no São Mateus. E por alguma razão que simplesmente não sei explicar - e não por falha da memória; na hora também não soube explicar essa minha ação - desci junto com ela. Poderia ter aproveitado mais a carona... Mas não quis. Troquei algumas palavras com minha amiga enquanto o carro de meu orientador se perdia entre os demais que passavam na Av. Independência em direção à Rio Branco. Depois, abri meu guarda-chuva e segui meu caminho quietinho, evitando a garoa fina.
Como um escritor que degusta um charuto após colocar o último ponto final em um livro, eu também queria cometer uma extravagância. Completamente avesso às idéias de fumar ou beber alguma coisa, decidi que pegar um táxi da Praça do São Mateus até em casa já era suficiente. Mas chegando lá, tive uma sensação, como diria Tio Patinhas, "de bolso vazio". Não me faltava dinheiro, mas a estranha comemoração - muito mais exótica que maças carameladas cobertas com castanhas - me pareceu absurda. Não desnecessária, mas absurda. Se o negócio era "pegar táxi", poderia andar mais dois quarteirões e pegar um táxi que sairia mais barato. E assim, exato oposto da performance de Gene Kelly em Singin' in the Rain, caminhei até o ponto de táxi seguinte. Só que a essa altura, a garoa deu uma trégua. E aí sim me pareceu estúpido ir para casa de táxi. Pensei: "ando mais um pouco e pego um ônibus na Rio Branco". Mas chegando na Rio Branco, fome! Nada como aquele hambúrguer enorme e incrivelmente barato que vende ali, naquela lanchonete uns cento e cinqüenta metros além da esquina com a Independência. E lá fui eu... Pedi o hambúrguer para viagem e, aproveitando a lanchonete vazia, sentei-me num banquinho de madeira. E foi ali que eu comecei a enteder porque tinha andado tanto...
Mais tarde, no banho, entendi perfeitamente minhas atitudes. Consegui me reconhecer essencialmente humano: o tempo todo, tinha buscado, por instinto, o prazer. Desde quando usei meus talentos para banalidades até aquela caminhada prolongada. Ah, sim, porque afinal de contas, inconscientemente, eu sabia que quanto mais cansado estivesse, mais prazer sentiria no repouso. E assim, já cansado, tinha decidido andar para me cansar ainda mais - pois assim sentiria mais prazer quando a água quente do chuveiro batesse em minhas costas naquele dia frio e úmido. Era reconfortante pensar que tudo estava acabado e que eu tinha conseguido. E "sozinho"...