quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Rafael x Felipe - num dia qualquer

- Todo mundo tem a capacidade de analisar coisas. "Vem de fábrica" no ser humano... Mas só vai aflorar e se transformar em algo realmente útil nas pessoas com propensão a exercitar o cérebro.
- Em outras palavras: só pode ser detetive quem estiver disposto a ser detetive. É isso?
- Exatamente isso, meu caro Rafael.
- Mas, de certo, você concorda que isso tem o seu preço. Não sei se o que vou falar é correto... Admito francamente que talvez não tenha essa "capacidade analítica" em nível elevado o suficiente para argumentar sobre o caso... Mas me parece, caro Felipe, que há um ônus em exercitar a mente. Você certamente conhece a famosa "lei do uso e do desuso", não conhece? Sinceramente, nunca vi razão alguma para essa lei não ser aplicável, também, ao cérebro. Notoriamente, quanto mais você se dedica a pensar, mais hábil fica nisso. Isso se chama experiência. Você já leu O retrato de Dorian Gray? Não? Pois deveria! É um livro assustadoramente bom! Bem, na verdade, o Dorian Gray é um mala-sem-alça e é um amigo dele que "salva" o livro, mas isso não importa. O que importa é a sagacidade de Oscar Wilde ao propor uma troca fantástica: logo no começo do livro, um amigo de Dorian Gray lhe pinta um retrato seu. Daí ser "o retrato de Dorian Gray"... Mas mais importante que isso é que Dorian Gray era um homem muito, muito bonito... Tá, eu sei que você acha tudo isso uma grande viadagem, mas ouça! Não era um retrato comum. Sobre ele, pairava um feitiço. Tá, eu sei que você não acredita nessas coisas, mas ouça porque o importante é a idéia! O retrato de Dorian Gray ficou absolutamente perfeito e havia uma razão para isso. E a razão era que, de certa forma, o retrato era Dorian Gray... Quer dizer, o homem e o retrato partilhavam uma relação única, mágica. Sabe aquela expressão "vão-se os dedos; ficam os anéis"? Não é o que acontece com a gente quando vê uma foto da nossa infância? Ou então quando ficamos velhos... É a mesma coisa! A nossa juventude é roubada pelo tempo, mas a juventude de uma figura num retrato, não... Imagine, então, como seria interessante se o retrato tivesse vida... Se o retrato pudesse ver, andar, pensar... Seria um ser imortal! E é exatamente isso que acontece no livro. Dorian conserva sua juventude enquanto o retrato envelhece em seu lugar! Assim, Dorian se torna imortal. Bem, só li até aí. Mas pense nas possibilidades de ser imortal. Não tendo mais que se preocupar com o tempo, você pode, simplesmente, "virar uma biblioteca". Essa eu tenho certeza que você conhece: a música do Raul Seixas que se chama "Eu nasci há 10000 anos atrás". Um pedaço do refrão é "e não há nada nesse mundo que eu não saiba demais". É essa a questão, Felipe: saber! Certa vez, um filósofo inglês chamado Francis Bacon disse: "Saber é poder". Quando se está livre do tempo, você se torna mais e mais poderoso à medida que adquire conhecimento, experiência. A gente tem um vislumbre disso mesmo em nossas curtas vidas. Quantas vezes você já resolveu um caso "por comparação" com outro? Aposto que algumas... Sabe, as pessoas "pensam igual" em alguns pontos fundamentais... A gente vai ficando mais maduro com o tempo e começa a fazer nosso trabalho com mais destreza, "percorrendo os atalhos", por assim dizer. E se o seu trabalho é pensar, descobrir, então eu acho que quanto mais se dedica a isso, mais viciado você fica em desvendar tudo o que lhe dá a mínima sensação de mistério. Estou certo?
- Nem tanto, Rafael. Sabe, às vezes a gente cansa...
- Pois é... Não somos imortais como o Dorian...
- Mas não dá pra negar que o que você disse sobre a experiência nos tornar mais ágeis é verdade.
- Sim, isso eu já sabia. Mas a minha questão, no fundo, é a seguinte: eu acho que todo detetive deve, antes de ser um bom analisador, ser um excelente observador. Porque, afinal de contas, como ele vai analisar se não consegue ver, não é mesmo?
- Desculpe te interromper, Rafael, mas tem jeito sim. A Virgínia é a pessoa pra te falar sobre isso. Mas devo dizer que essa habilidade de analisar sem ver só é possível para quem tem muita experiência.
- Sim, a Virgínia é excepcional mesmo... Mas, enfim, o que eu queria dizer é que você precisa estar atento para o que está acontecendo. Sabe, ver as coisas... Ou melhor, reparar nelas. Você já viu O Fabuloso Destino de Amélie Poulain?
- Não.
- Jura? Em que planeta você vive, Felipe? Depois me lembre de te emprestar esse filme... Talvez você não goste muito, mas tenho certeza que a Virgínia vai amar. Ela vai se identificar muito com a Amélie... Bem, o importante é que a Amélie Poulain diz que gosta de reparar em pequenos detalhes que ninguém mais vê. Sabe, uma coisa que chamaria a atenção dela seria se ela estivesse assistindo a um filme e de repente aparecesse uma mosca voando na tela. Não, não no cinema, mas no filme. Seria um pequeno defeito do filme: enquanto a cena era filmada, uma minúscula mosca resolveu dar uma de atriz... Sendo muito pequenininha, passou despercebida a toda equipe de produção e foi parar na telona sem ao menos receber algum crédito... Mas mesmo uma mosquinha de nada fica grande o suficiente para ser vista numa tela de cinema... O caso é que como a nossa atenção está desviada para a ação, para as personagens, para a história, a gente nem repara naquela pequena mosca fazendo uma pontinha. Enfim, há certas pessoas com essa capacidade de reparar em pequenos detalhes extremamente apurada. E isso dá uma outra visão de mundo para elas...
- Você é uma dessas pessoas, certo?
- Creio que sim... Lógico que um monte de coisa me passa despercebida num primeiro momento. Mas se tenho a oportunidade de olhar novamente... É difícil eu não encontrar algo curioso e até meio poético!
- Poético?
- É, poético, por assim dizer.
- Como o quê?
- Quer ver, hoje mesmo me aconteceu uma coisa dessas. Você sabe que eu tenho um blog, não sabe? Então, uma coisa que eu tenho pensado em fazer é "me tirar" do blog, parar de falar de mim. É meio difícil e até um pouco sem sentido se você considerar que a coisa chama "Jarro de memórias"... Mas, enfim, estou pensando em escrever crônicas sobre o que tenho visto na rua. Tudo bem que é exatamente isso que tenho feito, mas queria fazer de uma forma diferente. Até agora, tenho sido, salvo raras exceções que não foram percebidas pelos meus poucos leitores, personagem das minhas crônicas. E não quero mais isso. Acho que me exponho demais procedendo assim... Quero simplesmente testemunhar uma cena qualquer e descrevê-la artisticamente, como quem pinta um quadro. E de preferência, impressionista. Hoje eu estava descendo o Morro da Glória, indo para a Cultura Inglesa. Estava passando em frente a uma lanchonete quando a moça jogou água no chão para lavar o piso. Só que a água escorreu para a calçada e foi correndo em direção à rua. Bacana foi como ela fez isso. A água não chegou até a calçada como uma onda, mas em pequenas ondinhas, e foi se espalhando de forma desigual... Em algumas regiões, formava um pequeno "rio", uma protuberância da poça maior. Não sei porque, mas aquilo me lembrou cobras rastejando. E logo pensei em como descreveria aquela cena no blog: e a água se espalhou pela calçada feito serpentes na areia quente.
- É, tem um quê de poesia...
- Você já leu Hemingway? Não? Tá, tudo bem, eu também não... Mas você já viu o filme Cidade dos Anjos?
- Você sabe que detesto esses filmes melosos...
- Eu também não sou muito chegado... Vi só um pedaço, há muito tempo, porque coloquei num canal de TV a cabo e estava passando. Daí, como parecia ser o filme mais comum de se encontrar nos perfis das mulheres que eu conhecia, fiquei vendo. Além do que, a música-tema do filme é "Iris", do Goo Goo Dolls. Nem é tão boa assim, mas chama "Iris". E você sabe que eu tenho a maior queda por esse nome... É o nome que daria a minha filha se algum dia fosse ser pai.
- Nada te impede de ser pai.
- Não é recomendável depois da quimioterapia do transplante.
- Adote.
- É, confesso que já pensei nessa possibilidade. Mas só vou me arriscar a isso depois de estar devidamente casado.
- Entendo, mas sobre o filme...
- Ah, sim, é um filme sobre um anjo (o Nicholas Cage) que vem à Terra para ajudar uma médica (a Meg Ryan). O filme é ruim, mas tem um pedaço que fiz questão de não varrer da memória, um pedaço em que os dois estão em uma biblioteca e o Nicholas Cage pega um livro do Ernest Hemingway e chama a atenção dela para a forma como o Hemingway descrevia as coisas. Ele tinha uma preocupação toda especial em descrever o gosto das coisas, o formato das coisas. Era minucioso. O tipo de cara que esqueceria a Marilyn Monroe se visse uma mosca voando do outro lado da tela... Bem, o importante é que o Hemingway era um cara que abusava dos adjetivos. E isso é uma coisa que eu tenho a maior dificuldade de fazer! Se você gravasse essa nossa conversa e depois a visse transcrita, poderia perceber que é muito difícil eu usar um adjetivo. É justamente por isso, por perceber que tenho dificuldade para usar adjetivos, que fico pensando neles quando escrevo para o blog. Você pode reparar que não disse "como serpentes na areia", mas "como serpentes na areia quente". Eu poderia ter ficado só com "como serpentes na areia", mas achei que a combinação do adjetivo com a metáfora daria um tom mais poético à coisa.
- E deu mesmo...
- Mas por que a gente estava falando disso?
- Você estava dizendo que as pessoas observadoras vêem o mundo de forma diferente.
- Ah, sim! É verdade! A gente vê "ângulos em uma estrela e Deus no infinito"...
- Depois dessa, Rafael, só com uma frase do Jonas mesmo: "Humanos"...

3 comentários:

Fábio Fortes disse...

Desde quando anda escrevendo diálogos filosóficos? Tem lido Platão?!

Há passagens desse texto que são lindas, poéticas até. Outras são puramente filosóficas, viva a maiêutica socrática! Está certo que em outras não há filosofia alguma, ou, se existe, é a filosofia do existir. É a sua vida, sua biografia, sua história.

Fiquei feliz em ler, me diz coisas bonitas, é bem escrito, flui na leitura.

Preciso reler e comentar algumas partes em particular, meu irmão.

Um abraço grande

Unknown disse...

Fábio Fortes é ótimo mesmo... Agora não sei se fui Sócrates ou se fui "o outro"!
Pena que a ética não te permitiu postar as partes mais "interessantes" da conversa...

Unknown disse...

Fábio não complica maiêutica socrática... até enrolei a língua agora...

ai ai Humanos ehhehe

e não é que num exame de inglês estava um ditado:

"A cidade não é uma selva de pedras mas um zoológico de humanos"

nunca tinha ouvido/lido esse ditado antes mas me fez pensar... como você mesmo escreveu, sempre há algo de semelhante entre todos(assim como nos animais no zoo) heehehe porém com tantas obrigações para cumprir os deveres que a sociedade nos chama esquecemos de observar...

posso dar um exemplo... quando estamos apaixonados não prestamos atenção nas pequenas dicas que a outra pessoa nos dá de como ela será depois que a fase da conquista terminar hehehe talvez por isso dizem "o amor é cego" e daí quando acaba a paixão só reclamamos que fulana é assim ou assado hehehe quem nunca viveu isso? ai ai humanos