sábado, 11 de abril de 2009

Silêncio

"Quando dizem meu nome, não sou mais. Quem sou eu?"

Quando eu era criança e até nos tempos de adolescência, falava pouco. Não tinha sequer o charme de uma voz rouca ou palavras sábias para compensar isso. Em geral, quando reflito sobre o que falei naquela época, percebo que falei para preencher lacunas - e que nada disse que fizesse alguma diferença. No entanto, a despeito da desconfiança velada de que meu silêncio significava falta de opinião, e talvez até de forma meio irônica, fato é que as pessoas me consideravam "gente fina", no sentido de tranquilo, bacana. Mas não exatamente interessante. Era o tipo de cara bom para completar time em peladas, mas não para formar "time" em baladas. Talvez percebendo isso, talvez só incomodados com minha mudez, o povo do Colégio me aconselhava a falar mais, a expor minhas opiniões.

Lembro-me de ter feito isso uma vez. Foi em 1996, na 6ª série, durante uma sessão da S.O.E. (Serviço de Orientação Educacional). Sabe-se lá porque, as psicólogas da futura "Sessão Psicopedagógica" (e sabe-se lá que nome tem hoje) acharam interessante pedir para aquelas crianças de 12-13 anos de idade escreverem em um pedaço de papel uma pergunta no seguinte formato: "você tira o chapéu para 'insira aqui seu assunto polêmico' ?". Quando abri o papelzinho e li "virgindade antes do casamento", fui acometido por uma vontade quase incontrolável de sair correndo da sala. Lembro que as perguntas anteriores tinham sido sobre coisas bem mais simples, que eu me sentiria bem mais à vontade de responder. Por que o Neves tinha que escrever aquela pergunta e por que o papel acabou vindo parar na minha mão após o sorteio, são questões que talvez se encontrem além de qualquer conjectura. Só de ler a pergunta para a turma, sorrisos de excitação e olhos faiscantes se abriram à minha frente: o cara mais fechado do mundo ia dar sua opinião num assunto que envolvia uma coisa misteriosa chamada "sexo" e outra ainda mais misteriosa chamada "casamento". O Rafael de 12 anos de idade disse em alto e bom tom, para quem quisesse ouvir, que até achava bacana "se guardar" para alguém que considerava especial, mas que caso se sentisse confiante para perder a virgindade antes do casamento, que mal haveria? Cabelos se arrepiaram, um autêntico urro de satisfação e incredulidade ecoou por toda a sala. Quem apostaria que aquele garoto caladão - numa época em que ser assim era meio démodée - simplesmente ia dizer, nas entrelinhas, que o casamento (subentendido como uma cerimônia oficial, geradora de um papel em que vem escritas as palavras "certidão de casamento") era uma prova que o amor verdadeiro torna desnecessária? Não me coloquei contra o casamento, no entanto. Acho a cerimônia muito bonita, mas não é - ou não deveria ser - ela que aumenta ou diminui o amor que uma pessoa sente por outra. Só bem depois é que percebi que minha sincera opinião era, por coincidência, justamente o que a turma dos descolados queria ouvir. A psicóloga me lançou um olhar esquisito enquanto eu ria da vibração da turma. Decidi ser mais prudente e conservador ao expor minhas opiniões. Mantive a boca fechada pelos cinco anos seguintes.

Nos tempos de graduação, fui me soltando aos poucos. De toda forma, continuei com a imagem do sujeito caladão, até misterioso. Mas é que aí comecei a adotar uma tática levemente diferente. Comecei a tentar conversar sem falar e ouvir sem escutar - a ideia de perturbar o som do silêncio nunca me agradou muito. O resultado foi desastroso. A dita "percepção feminina" deu mostras seguidas de não passar de uma lenda. Em certo sentido, posso mesmo dizer que meus amigos homens me compreendiam melhor que as minhas amigas.

Já no doutorado, decidi mudar de tática novamente. Comecei a falar, mas não a me explicar. Queria ver se as pessoas faziam como eu e tentavam ver cada situação sob todos os ângulos possíveis antes de formar uma opinião. Não fazem. Ou melhor: poucas fazem. Muito poucas mesmo. O resultado foi catastrófico: as pessoas passaram a formar opiniões quase maldosas de minha pessoa. Boa parte disso se deve, é claro, a estratégia que usei para expor minhas opiniões. Mas acabou-se por formar um maldito rótulo, que levou a preconceitos, desconfianças e conclusões precipitadas - além de revelar orgulhos insuspeitos. Eu podia ter a melhor das intenções que era visto como esnobe e coisas ainda menos nobres.

Estimulado a falar, o sempre quieto e bem quisto Rafael se transformou num desagradável orador. As pessoas reclamavam de eu não falar. E agora reclamavam de como eu falava! A meu ver, aquilo era querer demais. Era como ser "preso por ter cão" e "preso por não ter cão". Ou de forma ainda mais precisa, a situação me lembrava o mito do nó górdio: Alexandre da Macedônia resolveu o intratável problema do nó que ninguém conseguia desatar com o nada convencional expediente de parti-lo ao meio com sua espada.

Enquanto torrava os miolos pensando num meio de desatar o bendito nó que me era apresentado, uma estranha solução preparava sua aparição. Sorrateira, a doença que corroeu meus dias de 2005 a 2007 voltava: o silêncio crescia como um câncer... E agora, à mera menção de um problema tratável, mas potencialmente doloroso, tudo se ajusta novamente. No hay banda!

4 comentários:

Renato disse...

Que bom que voce gostou do blog... E voce estah certo - eu tinha mesmo trocado o x pelo y, mas jah consertei. Gostei muito do seu texto tb. Abraco, PL

Fábio Fortes disse...

Rafael,

o seu silêncio é o das pessoas de inteligência acima da média, que conseguem traduzir nos seus próprios pensamentos a complexidade da realidade da vida a sua volta. Sem falar desnecessariamente. Aliás, falar pouco pode até significar dizer mais. E isso, com certeza, sei que vc faz. Haja vista, por exemplo, os textos que escreve.
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Com relação ao mal potencialmente doloroso, estamos em oração por vc. O seu anjo protetor me diz que não há motivos para se afligir.

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Em breve estou em Juiz de Fora, para transmitir a força e o abraço do amigo.

Fica com Deus

Unknown disse...

Caro Amigo,
além da presença marcante que o teu silêncio deixa transparecer - poucos conheci com olhar profundo como o teu - descubro nessa primeira visita ao teu blog também uma grande capacidade de tratar as palavras e suas relevâncias mais sutis.
De forma bem íntima, já percebi que as vezes que mais falo são aquelas quando teria menos a asseverar. Parece que, na maioria dessas vezes, tentamos preencher, expelindo palavras, o vazio da irrelevância de nossas opiniões.
É um atributo ímpar teu, e não "queime seus miolos" bolando estratégias mirabolantes, pois nada mais sutil e belo do que aqueles que sabem manipular o silêncio.

Lembro-me de um personagem inglês do meu ídolo de adolescência, Júlio Verne, na surpreendente "Volta ao mundo em oitenta dias." que vontade me dava de ser aquele inglês que falava, gesticulava, até mesmo caminhava de forma otimizada, sem disperdiçar acenos ou palavras...
A mim, que chego devagar e a menos tempo a tua vida, teu silêncio é cheio de significância. Imagino então, que para os bem mais próximos e de longa data, esse teu silêncio ecoe estrodosamente em seus corações.

Abraço forte do novo leitor.

Paula Esposito disse...

Curioso. Passei por situaçao semelhante durante o colégio. Nao era algo organizado, com psicólogos. Acho que os meus professores estavam mais para psicopatas...

Durante uma aula de "educaçao" sexual, eu, assim como vc, simplesmente nao abria a boca. Aliás, eu tb nao abria a boca para nada. Estávamos no 1º ano do segundo grau. A galera participava da aula com respostas predominantemente hipócritas. Até que a professora apontou o dedo p mim e me perguntou o que eu achava do sexo antes do casamento. Senti meu rosto arder, nao por causa da resposta, mas pq eu tinho ódio qd alguém me pedia para falar em público. Os alunos olharam p mim curiosos em ouvir a resposta de alguém que mal conheciam.

Apesar da timdez, nunca tive problemas em expor opinioes. O problema (incrível como nao consigo controlar isso) é a carga de deboche que acompanha minhas respostas, principalmente em assuntos assim, em q as pessoas se esquivam tanto.

"Acho que nao eh novidade p ninguém a quantidade de mulheres frustradas e sem noçao do que seja orgasmo por conta desse tipo de valor que, creio eu, nao seja um valor pessoal, mas da sociedade. Acredito que a experiencia sexual antes do casamento traria maturidade e evitaria muitos problemas", respondi. Rafa, vc tinha que ver a cara do povo. Bom, foi só um registro de uma lembrança.

Quanto ao silencio, é um parceiro meu de longa data e um poderoso meio de comunicaçao. Gostei muito do que o Hugo escreveu. Bolar estratégias acho que é bobagem. Vc acaba tentando se mostrar de uma maneira que vc nao é e isso traz todo tipo de complicaçao, as quais vc mesmo citou no seu texto.

Há quem entenda muito bem o seu silencio. Estamos com vc.